quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Um País Chamado Alechinsky

Ele não sabe que gostamos de vagar por suas pinturas, que há muito tempo nos aventuramos em seus desenhos e suas gravuras, examinando cada virada e cada labirinto com uma atenção sigilosa, com um interminável apalpar de antenas. Talvez seja tempo de explicar por que renunciamos durante longas horas, às vezes uma noite inteira, à nossa fatalidade de formigueiro faminto, às intermináveis fileiras indo e vindo com pedacinhos de grama, fragmentos de pão, insetos mortos, por que há muito tempo esperamos ansiosas que a sombra caia sobre os museus, as galerias e os ateliês (o seu, em Bougival, onde temos a capital do nosso reino) para abandonar as tarefas do fastio e subir até os recintos onde os jogos estão a nossa espera, entrar nos polidos palácios retangulares que se abrem para as festas.

Anos atrás, num desses países que os homens batizam e armam para nosso internacional regozijo, uma de nós subiu por engano num sapato: o sapato começou a andar e entrou numa casa: assim descobrimos nosso tesouro, as paredes cobertas de cidades maravilhosas, as paisagens privilegiadas, a vegetação e as criaturas que nunca se repetem. Nos nossos anais mais secretos consta o relato do primeiro achado: a exploradora levou uma noite inteira para achar a saída de uma pequena pintura em que os caminhos se enredavam e se contradiziam como num ato de amor interminável, uma melodia recorrente que dobrava e desdobrava a fumaça de um cigarro passando para os dedos de uma mão até se abrir numa cabeleira que entrava cheia de trens na estação de uma boca aberta contra o horizonte de lesmas e casas de laranja. Seu relato nos comoveu, nos transformou, fez de nós um povo ansioso por liberdade. Decidimos reduzir para sempre o nosso horário de trabalho (foi preciso matar alguns chefes) e informar às nossas irmãs, onde quer que estivessem – ou seja em todo lugar –, as chaves para chegar ao nosso jovem paraíso. Emissárias munidas de minúsculas reproduções de gravuras e desenhos empreenderam longas viagens para levar a boa-nova; exploradoras obstinadas localizaram pouco a pouco os museus e as mansões que guardava, os territórios de tela e de papel que nós amávamos. Agora sabemos que os homens possuem catálogos desse território, mas o nosso é um atlas de páginas dispersas que ao mesmo tempo descrevem e são o nosso mundo eleito: e é disso que falamos aqui, de portulanos vertiginosos e de bússolas de tinta, de reuniões de cor nas encruzilhadas da linha, de encontros pavorosos e alegríssimos, de jogos infinitos.

Se, no começo, excessivamente acostumadas ao nosso triste viver em duas dimensões, ficávamos na superfície e nos bastava a delícia de perder-nos e encontrar-nos e reconhecer-nos ao final das formas e caminhos, aprendemos rapidamente a mergulhar nas aparências, a nos enfiar por baixo de um verde para descobrir o azul ou um coroinha, uma cruz de pimenta ou um carnaval de aldeia; as áreas de sombra, por exemplo, os lagos chineses que a princípio evitávamos porque nos enchiam de medrosas dúvidas, tornaram-se espeleologias nas quais todo temos de cair dava lugar ao prazer de passar de uma penumbra a outra, de entrar na luxuosa guerra do negro contra o branco, e quem chegasse até o mais fundo descobria o segredo: só por baixo, por dentro, as superfícies podiam ser decifradas. Percebemos que a mão que havia traçado aquelas figuras e aqueles rumos com que tínhamos aliança era também a mão que se erguia lá de dentro até o ar enganoso do papel; seu tempo real se situava ao lado do espaço externo que prismava a luz dos óleos ou enchia as gravuras de riscos de sépia. Entrar em nossas cidadelas noturnas deixou de ser a visita em grupo que um guia comenta e estranha; agora eram nossas, agora vivíamos nelas, fazíamos amor em seus aposentos e bebíamos hidromel da lua em varandas habitadas por uma multidão tão atribulada e espasmódica quanto nós, figurinhas e monstros e animais enredados Na mesma ocupação do território e quem nos aceitavam sem desconfiança como se fôssemos formigas pintadas, o desenho móvel da tinta em liberdade. Ele não sabe disso, de noite dorme ou sai com seus amigos ou fuma lendo e ouvindo música, todas essas atividades insensatas que não nos concernem. Quando volta de manhã para seu ateliê, quando os guardas começam sua ronda nos museus, quando os primeiros interessados entram nas galerias de pintura, não estamos mais lá, o ciclo do sol nos devolveu aos nossos formigueiros. Mas furtivamente gostaríamos de dizer-lhe que vamos voltar com as sombras, que escalaremos trepadeiras e janelas e incontáveis paredes para chegar afinal às muralhas de carvalho ou de pinho atrás das quais nos espera, tenso em sua pele fragrante, o nosso reino de cada noite.

Pensamos que se um dia a insônia o trouxer de lâmpada na mão até algum de seus quadros ou desenhos, veremos sem terror seu pijama que imaginamos listrado em branco e preto, e que ele se deterá interrogante, ironicamente divertido, observando-nos com vagar. Talvez demore até nos descobrir, porque as linhas e cores que deixou lá se mexem e tremem e vão e vem como nós, e nesse trânsito que explica nosso amor e a nossa confiança poderíamos talvez passar despercebidas; mas sabemos que nada escapa aos seus olhos, que ele vai começar a rir, que nos tratará de tontas porque uma corrida irrefletida está alterando o ritmo do desenho ou introduzindo o escândalo de uma constelação de signos. O que podem fazer formigas contra um homem de pijama?

CORTÁZAR, Julio. O Último Round, Tomo I. Tradução de ROITMAN, Ari e WACHT, Paulina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.




domingo, 25 de janeiro de 2009

No rastro de Sérgio Ferro - Resenha 03:


Arquitetura Nova (1967)

Publicado originalmente na revista Teoria e Prática, n. 1, pp.3-15. Posteriormente reeditado em Arte em Revista, n. 4 (1980) e Espaço e Debate, n. 40 (1997).


Antes de ser apenas um texto que caracteriza a obra de Sérgio Ferro sob o corte de perspectivas do golpe militar de 1964, “Arquitetura Nova” foi um grupo em ação dentro e fora da FAUUSP desde 1962, constituído por ele mesmo, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, a primeira geração de arquitetos “modernos” pós-Brasília, chegaram a constituir escritório com vários projetos experimentais, como já exposto na resenha 02. “Durante o regime militar, Sérgio Ferro, assim como seus companheiros da Arquitetura Nova, relacionou-se ao Partido Comunista, mas o PC não chegou a aceitar sua crítica da arquitetura. Juntou-se à Aliança Libertadora Nacional, de Carlos Marighella.” (ver: Wikipédia). A partir de então, seus caminhos foram tortuosos até o exílio na França na década de setenta.


Em meio à efervescência política dos anos sessenta, Sérgio lança ao contexto brasileiro este texto caloroso, que não perdeu atualidade em muitos aspectos. Em especial quando analisa as contradições que apareciam nas “estruturas” arquitetônicas de então: seu conteúdo – que enunciava as soluções de massa e a democracia – e sua lógica construtiva começam a esvaziar-se, escorregando para “gestos ilusionistas”, para uma “racionalidade mentirosa”, conformando-se à nova situação: a encomenda individual da residência burguesa em meio à necessidade de soluções de massa. Com isto, o grupo traz à tona o debate sobre a relação entre “conteúdo / estrutura” e “superestrutura / infra-estrutura” para o contexto da arquitetura, do qual falaremos mais tarde.


Sérgio nota a contradição entre forma estética e conteúdo social na arquitetura, na promessa de “desenvolvimento” (conteúdo) e na lógica construtiva que a racionalidade enunciava (que agora se esvaziava para adaptar-se). Impulsionada pelo golpe militar, a arquitetura não sofreu retrocesso formal (os militares não “exumaram” estilos do passado): houve uma reafirmação das posições originais, que sofreram uma violenta inversão no conteúdo social. A crítica, neste momento, se volta contra uma arquitetura modernista tautológica (sob o signo da auto-referência) e a produção arquitetônica instituída no Brasil de uma forma geral, estabelecendo-se especificamente como um “contraponto teórico” à obra e a escola do antigo mentor do grupo, o professor Vilanova Artigas. Artigas, também ligado ao PC, acreditava na força de antecipação da vanguarda, mas Sérgio acreditava que suas obras eram mais propostas para depois ou estímulos para mudanças do que armas para a luta. Segundo Sérgio, em entrevista à revista Crítica Marxista, “Artigas estava convencido – como quase toda esquerda de então – que a transformação viria do avanço das forças produtivas.” Porém, “a crítica posterior ao fracasso das economias ditas socialistas que abriu o debate sobre as relações de produção – meu eixo de trabalho – não era do seu tempo.”


Sérgio acaba por compreender que, mesmo num desenho sóbrio e fácil de ser ensinado e produzido, a somatória das duas solicitações adversas (a obra em si e a teoria modificadora - de background da obra) produz construções híbridas e desconexas, sinais de contradição não superada. Nisto a obra toma caráter de denúncia, porém o arquiteto acaba por agir na faixa que o sistema o atribui (a arquitetura), aceitando a fragmentação da particularidade (necessidades práticas da obra), que acaba por diluir a crítica. A obra, complexa demais, já não comunica e o arquiteto, complexo demais, já não é ouvido. “Dentro da arquitetura, este é o limite da atitude crítica: a radicalização da contradição até o absurdo. Esta situação, obviamente, é insuperável por caminhos arquitetônicos.” O conteúdo não resiste a infinitas variações formais, principalmente quando comprometido com uma realidade oposta.


O que levou Sérgio, juntamente com Rodrigo Lefèvre e Diógenes José Carvalho Oliveira, supostamente, a colocar uma bomba-relógio no sub-solo do Conjunto Nacional, em São PauloU.S. Information Agency), tendemos a acreditar, não foi uma atitude de otimismo em relação à profissão. Mesmo assim foi “acusado” em certa ocasião por um estudante situacionista em uma palestra de 1968: O senhor é um traidor! O Senhor nos dá esperanças!


Cremos que o problema da profissão exposto por Sérgio neste texto venha ser uma falta de perspectivas de mudança que avançava sobre o fazer da profissão, que continua a homogeneizar o trabalho, tanto do técnico quanto do trabalhador, até a atualidade. As obras não expressam mais conteúdos sociais, expressam as relações sob o capital: quando Sérgio fala da prática da profissão, a conclusão nos é clara: “sua afirmação só é possível dentro de um projeto (capitalismo) que os compromete”.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

E por falar em Eládio Dieste...

Igreja de Atlântida, Uruguay.

Na Obra de Dieste...

Na obra de Dieste não cabe o que não é indispensável. O valioso para ele reside no que existe, no que tem a seu alcance. Seu primeiro passo é saber que algo pode ser feito e como fazer: artífice do essencial, lhe incomoda que os projetos esqueçam as possibilidades de um país, porque as soluções se alcançam apesar do nível econômico de uma sociedade.

Na obra de Dieste não cabe o que não é indispensável. Sabe que seu caminho é um caminho iniciado a partir do técnico e industrial, mas está convencido de que oferece novas vias. As formas não são resultado de uma preocupação artística e sim derivam tanto do comportamento dos materiais como de sua eficácia estrutural.

Na obra de Dieste não cabe o que não é indispensável, e indispensável para ele é uma fé cega no ser humano (como transmite em todas suas conferências). Trabalhar mais perto de nossa realidade e aceitar com discrição as soluções que outros lançaram, este é seu ensinamento.

Antônio Jiménez Torrecillas
Granada, 1996
Traduzido por Flip


O jovem aprendiz e o grande arquiteto uruguaio.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

No rastro de Sérgio Ferro - Resenha 02:


Arquitetura Experimental (1965)

Seleção (rebatizada) de textos que acompanham a apresentação de projetos de Sérgio Ferro, Rodrigo Lefevre e Flávio Império na revista Acrópole, n. 319, p. 23-44.


Neste ponto partimos da “poética da economia”. É neste texto que pela primeira vez os três arquitetos apresentam este conceito de forma experimental e mostram no que ele se diferencia da ideologia modernista, então fortemente dominante. Cabe dizer que hoje esta ideologia ainda é fortemente dominante dentro da academia, que, teoricamente, é onde se teria maior liberdade de experimentar. O texto começa com algumas frases bastante críticas de Flávio Império, principalmente ao espírito da época, que poderiam ter sido escritas semana passada:


Há quem se sinta profundamente moderno por afirmar que o nosso século é ‘caótico’ e que o mundo do nosso tempo é ‘non sense’. (...). O ‘caótico’ nasce de uma comparação simplista da aparência dos fatos ou duma ânsia idealista de significações finais para a ‘explicação’ do Universo.


Com isto, Flávio parece estar introduzindo a idéia de que o sentimento de “caos” que dominava nos meios nos quais se pensava a arquitetura buscavam os sistemas fechados em contraponto, o caos era levado em conta somente “incentivando o conforto heróico-masoquista dos dramas pessoais”. Argumenta que, para se “reter a história”, precisa-se buscar sistemas não-finalistas e móveis que permitam o conhecimento. “Conhecimento como forma de participação e não como explicação definitiva, instrumento de verificação e não ‘a verdade’.” Com estes argumentos, mostra que o significado social da arquitetura burguesa e modernista afasta a própria arquitetura dos vínculos mais objetivos com a realidade, o que a impede de agir no seu verdadeiro campo.


Rodrigo Lefèvre argumenta que a mais alta racionalidade dos países “desenvolvidos” não parece mais do que irracionalidade naquele momento no Brasil. Mesmo assim tentava-se importar modelos, o resultado foi subserviência e marginalidade da profissão, ou pior, Arquitetura como artigo de luxo.


Sérgio Ferro argumenta, dando continuidade, que somos impedidos de agir em nossas verdadeiras atribuições. Neste sentido nossas realizações são poucas e restritas, gerando uma ansiedade pela frustração crescente. Esta frustração adquire um caráter programático e militante: denuncia, fazendo papel de arquitetura de laboratório, ensaia inúmeras possibilidades técnicas e espaciais numa atitude de estímulo a transformações sociais profundas. “Não há como encontrar linguagem harmônica em tempos desarmônicos. Mas, e é o essencial, (o arquiteto) procura participar, dentro de um pensamento eminentemente crítico no momento presente.”


Após esta apresentação seguem-se cinco obras “experimentais” com algumas anotações valiosas em cada uma delas. Chama atenção a experiência frustrada da “Residência Boris Fausto”, no Butantã, com vedação industrializada. Frustrada não por causa dos trabalhadores, que se adaptaram muito bem à nova técnica, mas, segundo os arquitetos, as placas de vedação não corresponderam às amostras, vieram com defeito de fabricação, e acabou sendo necessário o uso de mata-juntas que não estavam previstas. Completa-se o quadro da obra: uma cobertura apoiada em quatro pilares formando terraços cobertos e a instalação elétrica aparente, fator de economia.


Residência Boris Fausto, Av. Afrânio Peixoto, SP, 1961. Arquiteto Sérgio Ferro


O que realmente chama atenção é que esta foi uma obra de transição. Após esta experiência o grupo de arquitetos decide explorar a possibilidade de racionalização das técnicas e materiais populares e tradicionais, descolando-se definitivamente da “modernidade construtiva”. Assim veio a “residência Bernardo Issler”, projeto de Sérgio Ferro. Esta obra parece ser determinante na “tese” que virá logo em 1976:


Residência Bernardo Issler, Granja Viana, Cotia, 1961. Arquiteto Sérgio Ferro - Fonte: Vitruvius


Sua racionalização, despreocupada com sutilezas formais e requintes de acabamento, associada a uma interpretação correta de nossas necessidades, não só favorece o surgimento de uma arquitetura sóbria e rude, mas também estimula a atividade criadora viva e contemporânea, que substitui, muitas vezes com base no improviso, o rebuscado desenho de prancheta.


Eis a “poética da economia”. O que também parece ser o gérmen que mais tarde dará origem à sua crítica ao brutalismo corbusiano, argumentando que na Europa ele não foi muito mais do que um estilo, mas nos países pobres ele é uma necessidade real que, inclusive, já era praticada, reivindicando para nós, tupiniquins, numa atitude irônica, o “brutalismo caboclo”.


Obs.: Cabe ressaltar que este tipo de abóbodas auto portantes começou a ser documentada no Uruguai só 1964 no trabalho do Arq. Eládio Dieste, que utilizava a tecnologia desde algum tempo antes de 1962 em forma de “bóvedas gausas”. Levando em consideração que a residência de Cotia foi construída em 1961 e a primeira residência construída por Dieste com a mesma tecnologia foi sua própria residência, em 1968, o grupo de arquitetos foi o primeiro a trazer este tipo de tecnologia de blocos cozidos para o “programa residência”. Este tipo de tecnologia é, em realidade, resgate de técnicas vernaculares, porém adaptadas ás forças produtivas da época.


Estas experiências foram interrompidas pelo golpe militar de 1964, o que caracterizou a obra de Sérgio Ferro sob o título de “Arquitetura nova” em 1967, sob o “corte”, a interrupção da esperança de transformação social que se prefigurava no Brasil.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

No rastro de Sérgio Ferro - Resenha 01:


Proposta inicial para um debate: possibilidades de atuação (1963)

Texto em co-autoria com Rodrigo Lefevre, publicado originalmente pelo GFAU (USP) no Caderno Encontros.


Este texto é um manifesto redigido por Sérgio Ferro e Rodrigo Lefevre, então dois jovens professores da FAUUSP, com 24 anos. Uma espécie de convocatória aos estudantes e professores a definirem posições políticas e de atuação no contexto do auge do debate político das reformas de base. Adotando uma posição marxista, questionam a possibilidade de uma confluência harmônica entre um projeto popular e o desenvolvimento das forças produtivas por meio da industrialização, planejamento e racionalização da construção, pondo em questionamento as premissas modernas (ou, mais precisamente, modernistas, a respeito da habitação). Com isto dizem que o avanço destas forças, por si só, não é capaz de promover “igualdade social” e convocam os arquitetos e estudantes à luta de classes propondo uma aliança entre técnicos e trabalhadores, que será o mote de toda produção de Sérgio ferro no futuro. Lançam, também, uma idéia do que seria a poética da economia: a linguagem do indispensável estabelecida nas bases da nossa realidade histórica.


Assim, no início do texto é amplamente exposto o contexto de confusão e angústia no que diz respeito às posições e ações diante do processo de projeto e construção. Argumentam que desde as soluções mais diretas como a escolha da forma e orientação do planejamento até o enfoque global, “a direção primeira do pensamento, as inúmeras implicações de cada atitude embaralham a intenção e confundem o pensamento”. “A angústia originada se acentua pelas intenções estranhas e mesmo desconhecidas com que se apresentam os caminhos”. Ao mesmo tempo ressaltam que a escolha de um “lado” na luta de classes é necessária e está contida em qualquer atitude que se tome, por menos comprometido com isto que se esteja. “A síntese social destas contradições todas, não tendo sido realizadas ainda, não podemos pretender possuí-la no pensamento: isto envolveria uma posição de ilusória autonomia da razão que nos recusamos a admitir”. Aqui, como se vê, já é ressaltada a dinâmica do conflito, contrário ao ideal da “harmonia” vigente no período modernista, assim como o experimentalismo, uma das poucas formas dialéticas negativas “objetiváveis” em arquitetura em termos de formato de proposta, senão a única.


Neste texto já nota-se a forma embrionária do que virá a tornar-se a tese (O canteiro e o desenho, 1976) de Sérgio Ferro, a saber, a aliança entre os técnicos e os trabalhadores da construção civil, apesar dos problemas do marxismo tradicional presentes neste texto como a permissividade a idéias como nacionalismo e desenvolvimentismo, racionalismo que, porém, estavam muito ligadas à época histórica e eram amplamente justificáveis a alguém comprometido com a prática de Arquitetura naquela época. De forma que este texto não visava ser mais do que um “chute inicial”, uma colocação de problemas que forneceriam elementos dos quais partir, o que, de fato, foi. Segundo os autores, as soluções deveriam ser dadas de forma coletiva através dos mais variados pontos de vista, mas acabaram se desenvolvendo de forma um pouco diferente do proposto, como veremos.

No rastro de Sérgio Ferro

Começamos, com esta pequena introdução, uma série de resenhas a respeito da obra de Sérgio Ferro, seguindo seu rastro, dívida antiga que estamos pondo em dia somente agora. Nós, jovens arquitetos que acabados de sair de uma das melhores universidades públicas do país, a UFRGS, sentimo-nos em dívida com esta produção teórica depois de tanto estudo de Teoria Crítica e nosso querido grupo de estudos, o Fim da Linha. Isto também é uma re-convocatória a todos que um dia iniciaram o estudo de “O capital” de Karl Marx, com vista noturna para a Redenção, no Van Gogh, boteco podrão da cidade baixa, ao qual sempre voltamos, assiduamente Van-goghianos que somos. Os estudos de Arquitetura e Trabalho Livre só são viáveis por causa destes precedentes, os quais temos de citar invariavelmente neste momento. Cabe lembrar aos leitores que as resenhas dos textos ficarão em ordem cronológica inversa por causa da dinâmica de postagem no blog, mas vale o esforço de ler em ordem. Pois, sem mais delongas, vamos à vaca fria.


Sérgio Ferro, como ele próprio se definiu, é um suicida do métier, ou, como costumamos chamá-lo, o carrasco do fetiche da arquitetura-mercadoria. Crítico da profissão fetichista do Arquiteto e Urbanista e seu instrumento, o desenho separado aliado ao canteiro de obras heterônomo, tentou levar a cabo os limites entre a profissão existente e uma comunidade de produtores livres, fundamentando assim sua obra no trabalho livre. (Sobre o vocabulário utilizado por Ferro e suas conseqüências teóricas versaremos em outra ocasião).


Formado na época da construção de Brasília, jovem arquiteto promissor, pintor, discípulo de Vilanova Artigas e Flávio Motta, participante do “lendário” grupo de estudos d’O Capital de Karl Marx na Rua Maria Antônia (USP) com Roberto Schwarz, Ruy Fausto, Emir Sader, entre outros. Foi, por décadas, acusado de traição, talvez por negar o desenho arquitetônico em prol do trabalho livre no canteiro, refugiando-se na academia e na pintura.


Creio, porém, como escreveu Walter Benjamin, que “ninguém havia percebido de que modo a miséria, não somente a social como a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes, transformavam-se em niilismo revolucionário.” Sérgio Ferro parece ter percebido quando fala do adorno como trabalho livre autodeterminado em Arquitetura. O “adorno é um crime”, sim, mas um crime contra a consciência burguesa. Porém vai bem mais longe do que o niilismo revolucionário do dia antes da festa, tenta realizar a festa.


Nenhum arquiteto havia percebido e demonstrado os lampejos desta “festa” de forma satisfatoriamente contundente antes, fazendo a devida interface da arquitetura com a crítica da economia política e com a filosofia hegeliana, tentando levar a arquitetura ao entendimento de esfera separada da vida social que a filosofia obteve com Hegel, na qual, mais tarde, Marx reconheceu um dos fundamentos do trabalho-mercadoria. Sérgio, acredito, lutou por fazer explodir as diversas “forças atmosféricas” ocultas na constituição da arquitetura como trabalho, como “manufatura serializada”, como técnica ainda residente no passado neolítico sob o falso signo da industrialização. Em suma, por amor à Arquitetura, negou-a como se fundamenta em nossa época, em nome da refundação de uma Arquitetura na qual o trabalho seja livre: é nela que vislumbra o melhor campo estético e técnico para a expressão coletiva deste tipo de “fazer”.


Em seus escritos mais recentes descreve com entusiasmo seu canteiro de obras em Grignam, vilarejo medieval onde mora no interior da França, o que traz à tona que o fato de que a experimentação arquitetônica real pode se efetivar em territórios “liberados socialmente” pelas organizações populares, como o MST, por exemplo, com o qual Ferro estabeleceu laços no Brasil. Afirma, através de experimentos, que a Arquitetura parece guardar o sentido experimental de autonomia produtiva melhor que outros “setores da economia”. Sua condição de “inclusão frágil” nos circuitos de acumulação parte do fim da linha a que chegou a sociedade de nossa época: é a chance para invenção de novas formas de organização social do espaço. Ou, em outras palavras, a arquitetura é o campo no qual ainda pode dar-se a aliança entre a pré-determinação do desenho e o experimentalismo do “trabalho livre” através do pacto entre técnicos e trabalhadores na liberação do potencial revolucionário do fazer em arquitetura. Isto, quando interrogado, deixa como tarefa para as próximas gerações, nós.


Sérgio afirma que: “o outro já germina no seu contrário e pode ser prefigurado sob forma de sua negação determinada”, circunscrevendo a arquitetura a uma dialética negativa e afirma que a critica radical ficará sempre aquém de si mesma se não for acompanhada de uma prática transformadora que pode dar-se através de aproximações sucessivas.


A seguir procederemos, em ordem cronológica, com alguns textos que mostram a trajetória de Sérgio Ferro até seu entendimento da Arquitetura mais contemporâneo. Partiremos dos primeiros textos de 1963, nos quais examina algumas “propostas” feitas com os companheiros Rodrigo Lefevre e Flávio Império até o “corte” de Arquitetura Nova, sob o regime militar, seguido de anotações que dariam origem a seu principal texto: O canteiro e o desenho, de 1976. No segundo momento analisaremos o próprio O canteiro e o desenho, que merece que nos atenhamos um pouco. Logo depois passaremos a seus textos da época de Grenoble, França, seguido da série de textos “recapitulações brasileiras” de seu livro “Arquitetura e Trabalho Livre”. Por último, dois textos de atualização e reafirmação de trajetória: Sobre o canteiro e o desenho e O desenho hoje e seu contra-desenho. Assim tentaremos recapitular a obra de Sérgio Ferro com a pretensão de conseguirmos avançar o debate em direção à liberação do potencial revolucionário na Arquitetura, com o qual já nos comprometemos a muito localmente. Esperamos seja tão construtivo aos leitores quanto tem sido para nós.


OBS: Todas as resenhas que serão apresentadas aqui são do mesmo livro (Sérgio Ferro – Arquitetura e trabalho livre, Cosac Naify, 2006), mas achamos por bem resenhar os textos por separado para recuperar o sentido de espaço de construção de conhecimento que precedeu cada texto. Assim, não faria sentido fazer uma resenha do livro como um todo sem separar por textos de cada época. Por isto optamos por escrevê-las separadamente.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Bye-Bye Bush?


Imagem madada pelo Brunão. Os caras que fizeram são Banksy. Muito clara a mensagem. É mais ou menos assim que funciona a irracionalidade do momento histórico, e que, apesar disto, se vangloria de seus progressos técnicos e tecnológicos através de seus megadispostos publicitários... "aproveitem, não vai durar para sempre!", "é só enquanto durar o estoque!", deveriam publicar em outdoors ou luminosos a respeito do ideário que os sustenta. Ah, aproveitando o ensejo, com Bush não vai a "era Bush". Ele só é especialmente estúpido, mas o que botou ele lá não mudou, aliás, é a mesma força que botou Obama no mesmo lugar. Aliás, é a mesma força que leva crianças para a Disney e se alimenta de lixo pasteurizado no McDonalds.

Bansy e outras coisas lindas da rua

"When I was a kid I used to pray every night for a new bicycle.
Then I realised God doesn’t work that way, so I stole one and prayed for forgiveness."

"Quando eu era um guri eu rezava todas as noites por uma bicicleta nova.
Depois me dei conta que Deus não funciona assim, então roubei uma e rezei por perdão."

- Emo Philips

É com essa singela frase que se apresenta o Bansky. Sem saber mais detalhes sobre isso, já vem a admiração pelos 2 murais absolutamente chocantes que constam na sua seção "da porta pra fora" :)

Essa vai em apoio as lindas coisas das ruas sujas e vivas desse mundo. Vai lá.








segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Vitória da população de baixa renda!!


APROVADA LEI DE ASSISTêNCIA TéCNICA GRATUITA!



O P R E S I D E N T E D A R E P Ú B L I C A

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o Esta Lei assegura o direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, como parte integrante do direito social à moradia previsto no art. 6o da Constituição Federal, e consoante o especificado na alínea r do inciso V do caput do art. 4o da Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.

Art. 2o As famílias com renda mensal de até 3 (três) salários mínimos, residentes em áreas urbanas ou rurais, têm o direito à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social para sua própria moradia.

§ 1o O direito à assistência técnica previsto no caput deste artigo abrange todos os trabalhos de projeto, acompanhamento e execução da obra a cargo dos profissionais das áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia necessários para a edificação, reforma, ampliação ou regularização fundiária da habitação.

§ 2o Além de assegurar o direito à moradia, a assistência técnica de que trata este artigo objetiva:

I - otimizar e qualificar o uso e o aproveitamento racional do espaço edificado e de seu entorno, bem como dos recursos humanos, técnicos e econômicos empregados no projeto e na construção da habitação;
II - formalizar o processo de edificação, reforma ou ampliação da habitação perante o poder público municipal e outros órgãos públicos;
III - evitar a ocupação de áreas de risco e de interesse ambiental;
IV - propiciar e qualificar a ocupação do sítio urbano em consonância com a legislação urbanística e ambiental.

Art. 3o A garantia do direito previsto no art. 2o desta Lei deve ser efetivada mediante o apoio financeiro da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para a execução de serviços
permanentes e gratuitos de assistência técnica nas áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia.

§ 1o A assistência técnica pode ser oferecida diretamente às famílias ou a cooperativas, associações de moradores ou outros grupos organizados que as representem.

§ 2o Os serviços de assistência técnica devem priorizar as iniciativas a serem implantadas:

I - sob regime de mutirão;
II - em zonas habitacionais declaradas por lei como de interesse social.

§ 3o As ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para o atendimento do disposto no caput deste artigo devem ser planejadas e implementadas de forma coordenada e sistêmica, a fim de evitar sobreposições e otimizar resultados.

§ 4o A seleção dos beneficiários finais dos serviços de assistência técnica e o atendimento direto a eles devem ocorrer por meio de sistemas de atendimento implantados por órgãos colegiados municipais com composição paritária entre representantes do poder público e da sociedade civil.

Art. 4o Os serviços de assistência técnica objeto de convênio ou termo de parceria com União, Estado, Distrito Federal ou Município devem ser prestados por profissionais das áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia que atuem como:

I - servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios;
II - integrantes de equipes de organizações não-governamentais sem fins lucrativos;
III - profissionais inscritos em programas de residência acadêmica em arquitetura, urbanismo ou engenharia ou em programas de extensão universitária, por meio de escritórios-modelos ou escritórios públicos com atuação na área;
IV - profissionais autônomos ou integrantes de equipes de pessoas jurídicas, previamente credenciados, selecionados e contratados pela União, Estado, Distrito Federal ou Município.

§ 1o Na seleção e contratação dos profissionais na forma do inciso IV do caput deste artigo, deve ser garantida a participação das entidades profissionais de arquitetos e engenheiros, mediante convênio ou termo de parceria com o ente público responsável.

§ 2o Em qualquer das modalidades de atuação previstas no caput deste artigo deve ser assegurada a devida anotação de responsabilidade técnica.

Art. 5o Com o objetivo de capacitar os profissionais e a comunidade usuária para a prestação dos serviços de assistência técnica previstos por esta Lei, podem ser firmados convênios ou termos de parceria entre o ente público responsável e as entidades promotoras de programas de capacitação profissional, residência ou extensão universitária nas áreas de arquitetura, urbanismo ou engenharia.

Parágrafo único. Os convênios ou termos de parceria previstos no caput deste artigo devem prever a busca de inovação tecnológica, a formulação de metodologias de caráter participativo e a
democratização do conhecimento.

Art. 6o Os serviços de assistência técnica previstos por esta Lei devem ser custeados por recursos de fundos federais direcionados à habitação de interesse social, por recursos públicos orçamentários ou por recursos privados.

Art. 7o O art. 11 da Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social - FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS, passa a vigorar acrescido do seguinte § 3o:

"Art. 11. .................................................................................

§ 3o Na forma definida pelo Conselho Gestor, será assegurado que os programas de habitação de interesse social beneficiados com recursos do FNHIS envolvam a assistência técnica gratuita nas áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia, respeitadas as disponibilidades orçamentárias e financeiras do FNHIS fixadas em cada exercício financeiro para a finalidade a que se refere este parágrafo." (NR)

Art. 8o Esta Lei entra em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação.

Brasília, 24 de dezembro de 2008; 187o da Independência e 120o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Guido Mantega
Paulo Bernardo Silva
Patrus Ananias
Márcio Fortes de Almeida


Salve prof. Albano, esta foi pra ti!

"A luta de classes que alguém educado por Marx jamais perde de vista é uma luta pelas coisas brutas e materiais sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes estas coisas não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nesta luta sob forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, dofundo dos tempos. Elas quastionarão sempre cada vitória dos dominadores." - W. Benjamin

domingo, 4 de janeiro de 2009

Uma amostra de vizinhança

Depois de um belíssimo seminário sobre Reforma Urbana ("um conceito a ser construído") na ocupação do MNLM na Borges, com uma participação de conteúdo radicalmente crítico para Porto Alegre dos indígenas do morro do osso, eis mais uma surpresa do movimento para o centro da cidade:

MNLM + Coletivo Muralha Rubro Negra