quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Um País Chamado Alechinsky

Ele não sabe que gostamos de vagar por suas pinturas, que há muito tempo nos aventuramos em seus desenhos e suas gravuras, examinando cada virada e cada labirinto com uma atenção sigilosa, com um interminável apalpar de antenas. Talvez seja tempo de explicar por que renunciamos durante longas horas, às vezes uma noite inteira, à nossa fatalidade de formigueiro faminto, às intermináveis fileiras indo e vindo com pedacinhos de grama, fragmentos de pão, insetos mortos, por que há muito tempo esperamos ansiosas que a sombra caia sobre os museus, as galerias e os ateliês (o seu, em Bougival, onde temos a capital do nosso reino) para abandonar as tarefas do fastio e subir até os recintos onde os jogos estão a nossa espera, entrar nos polidos palácios retangulares que se abrem para as festas.

Anos atrás, num desses países que os homens batizam e armam para nosso internacional regozijo, uma de nós subiu por engano num sapato: o sapato começou a andar e entrou numa casa: assim descobrimos nosso tesouro, as paredes cobertas de cidades maravilhosas, as paisagens privilegiadas, a vegetação e as criaturas que nunca se repetem. Nos nossos anais mais secretos consta o relato do primeiro achado: a exploradora levou uma noite inteira para achar a saída de uma pequena pintura em que os caminhos se enredavam e se contradiziam como num ato de amor interminável, uma melodia recorrente que dobrava e desdobrava a fumaça de um cigarro passando para os dedos de uma mão até se abrir numa cabeleira que entrava cheia de trens na estação de uma boca aberta contra o horizonte de lesmas e casas de laranja. Seu relato nos comoveu, nos transformou, fez de nós um povo ansioso por liberdade. Decidimos reduzir para sempre o nosso horário de trabalho (foi preciso matar alguns chefes) e informar às nossas irmãs, onde quer que estivessem – ou seja em todo lugar –, as chaves para chegar ao nosso jovem paraíso. Emissárias munidas de minúsculas reproduções de gravuras e desenhos empreenderam longas viagens para levar a boa-nova; exploradoras obstinadas localizaram pouco a pouco os museus e as mansões que guardava, os territórios de tela e de papel que nós amávamos. Agora sabemos que os homens possuem catálogos desse território, mas o nosso é um atlas de páginas dispersas que ao mesmo tempo descrevem e são o nosso mundo eleito: e é disso que falamos aqui, de portulanos vertiginosos e de bússolas de tinta, de reuniões de cor nas encruzilhadas da linha, de encontros pavorosos e alegríssimos, de jogos infinitos.

Se, no começo, excessivamente acostumadas ao nosso triste viver em duas dimensões, ficávamos na superfície e nos bastava a delícia de perder-nos e encontrar-nos e reconhecer-nos ao final das formas e caminhos, aprendemos rapidamente a mergulhar nas aparências, a nos enfiar por baixo de um verde para descobrir o azul ou um coroinha, uma cruz de pimenta ou um carnaval de aldeia; as áreas de sombra, por exemplo, os lagos chineses que a princípio evitávamos porque nos enchiam de medrosas dúvidas, tornaram-se espeleologias nas quais todo temos de cair dava lugar ao prazer de passar de uma penumbra a outra, de entrar na luxuosa guerra do negro contra o branco, e quem chegasse até o mais fundo descobria o segredo: só por baixo, por dentro, as superfícies podiam ser decifradas. Percebemos que a mão que havia traçado aquelas figuras e aqueles rumos com que tínhamos aliança era também a mão que se erguia lá de dentro até o ar enganoso do papel; seu tempo real se situava ao lado do espaço externo que prismava a luz dos óleos ou enchia as gravuras de riscos de sépia. Entrar em nossas cidadelas noturnas deixou de ser a visita em grupo que um guia comenta e estranha; agora eram nossas, agora vivíamos nelas, fazíamos amor em seus aposentos e bebíamos hidromel da lua em varandas habitadas por uma multidão tão atribulada e espasmódica quanto nós, figurinhas e monstros e animais enredados Na mesma ocupação do território e quem nos aceitavam sem desconfiança como se fôssemos formigas pintadas, o desenho móvel da tinta em liberdade. Ele não sabe disso, de noite dorme ou sai com seus amigos ou fuma lendo e ouvindo música, todas essas atividades insensatas que não nos concernem. Quando volta de manhã para seu ateliê, quando os guardas começam sua ronda nos museus, quando os primeiros interessados entram nas galerias de pintura, não estamos mais lá, o ciclo do sol nos devolveu aos nossos formigueiros. Mas furtivamente gostaríamos de dizer-lhe que vamos voltar com as sombras, que escalaremos trepadeiras e janelas e incontáveis paredes para chegar afinal às muralhas de carvalho ou de pinho atrás das quais nos espera, tenso em sua pele fragrante, o nosso reino de cada noite.

Pensamos que se um dia a insônia o trouxer de lâmpada na mão até algum de seus quadros ou desenhos, veremos sem terror seu pijama que imaginamos listrado em branco e preto, e que ele se deterá interrogante, ironicamente divertido, observando-nos com vagar. Talvez demore até nos descobrir, porque as linhas e cores que deixou lá se mexem e tremem e vão e vem como nós, e nesse trânsito que explica nosso amor e a nossa confiança poderíamos talvez passar despercebidas; mas sabemos que nada escapa aos seus olhos, que ele vai começar a rir, que nos tratará de tontas porque uma corrida irrefletida está alterando o ritmo do desenho ou introduzindo o escândalo de uma constelação de signos. O que podem fazer formigas contra um homem de pijama?

CORTÁZAR, Julio. O Último Round, Tomo I. Tradução de ROITMAN, Ari e WACHT, Paulina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.




Um comentário:

R.R.Dias disse...
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