quarta-feira, 10 de junho de 2009

Ludentis

Desde que comecei a leitura de Homo Ludens de Johan Huizinga eu esperava uma deixa pra introduzi-lo nesse diálogo que temos no blog. Ao invés de contrapor ou ir mais além para dentro da academia, vou dar um passo atrás, colocar fragmentos editados pouco criteriosamente desse texto que de maneira muito tranquilo nos leva num passeio pela civilização humana construindo as bases da cultura e do nosso comportamente e explicitando os elementos lúdicos presentes neles.

Sem mais, vamos a alguns fragmentos:

HUIZINGA, Johan [tradução João Paulo Monteiro]. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007.

Prefácio

Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto a razão do sécullo XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber. Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta, visto que pode servir para designar grande número de animais. Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar na nossa nomenclatura.

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Assim, o jogo é aqui tomada como fenômeno cultural e não biológico, e é estudado em uma perspectiva histórica, não propriamente científica em sentido restrito. [...] Se eu quisesse resumir meus argumentos sob a forma de teses, uma destas seria que a antropologia e as ciências a ela ligadas têm, até hoje, prestado muito pouca atenção ao conceito de jogo e à importância fundamental do fator lúdico para a civilização.

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1. Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno Cultural

O jogo é mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É nos porssível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à idéia de jogo.

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Desde já encontramos aqui um aspecto muito importante: mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassao os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa " em jogo" que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando de " instinto" ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou "vontade" seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência.

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Se alguma delas [explicações sobre os porquês do jogo] fosse relamente decisiva, ou eliminaria as demais ou englobaria todas em uma unidade maior. A grande maioria, contudo, preocupa-se apenas superficialmente em saber o que o jogo é em sí mesmo e o que ele significa para os jogadores. Abordam diretamente o jogo utilizando-se dos métodos quantitativos das ciências experimentais, sem antes disso rpestarem atenção a seu caráter profundamente estético.[...] E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo. O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energoa excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, etc, soba a forma de exercícios e reações puramente mecânicos. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo.

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Este último elemento, o divertimento do jogo, resiste a toda análise e interpretação lógicas. [...] E é ele precisamente que define a essência do jogo. Encontramo-nos aqui perante uma categoria absolutamente primária da vida, que qualquer um é capaz de identificar desde o próprio nível animal. É legítimo considerar o jogo uma "totalidade", no moderno sentido da palavra [...].

Como a realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida humana é impossível que tenha seu fundamento em qualquer elemento racional, pois nesse caso, limitar-se-ia à humanidade. A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a qualquer concepção do universo. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua lingua não possua um termo geral capaz de defini-lo. A existência do jogo é inegável. É possível negar, se se quiser, quase todas as abstraçõe: a justiça, a beleza, a verdade, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo.

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As grandesa tividades arquetípicas da sociedade humana são desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com esta designação elevá-las ao domínio do espírito. Ma criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda a metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homen cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.

Outro exemplo é o mito, que é também uma transformação ou uma "imaginação" do mundo exterior, mas implica em um processo mais elaborado e complexo do que ocorre no caso das palavras isoladas. O homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos fenômenos atribuindo a este um fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito de fantasia que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do cultom verificaremos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra.


Ora, é no mito e no culto que tem origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas elas tem suas raízes no solo primevo do jogo.

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Chegamos assim à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida "corrente" nem vida " real". Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida "real" para uma esfera temporária de atividade com orientação própria.[...] Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância, ele se nos apresenta: ocmo um intervalo em nossa vida quotidiana. [...] Nessa medida, situa-se numa esfera superior aos processos estritamente biológicos de alimentação, reprodução e autoconservação.

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O jogo distingue-se da vida "comum" tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características principais: o isolamento, a limitação. É "jogado até o fim" dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um caminho e sentido próprios.

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Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é desordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. É talvez devido a esta afinidade profunda entre ordem e o jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga medida ligado ao domínio da estética. Há nele uma tendência para ser belo. [...]

O elemento de tensão [...] desempenha um papel especialmente importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo ao desenlace, o jogador quer que alguma coisa "vá" ou "saia", pretende "ganhar" à custa de seu próprio esforço.[...] Embora o jogo enquanto tal esteja para além do domínio do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habiliade e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua "lealdade". Por que, apesar de seu ardente desejo e ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo.

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Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como "não-séria" e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.

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12. Elemento Lúdico na Cultura Contemporânea

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"Ele considerava jogos infantis todas as opiniões humanas" diz a tradição grega mais tardia acerca de Heráclito. Em oposição a esta frase lapidar, citemos agora de maneira mais extensa as profundas palavras de Platão [...] "Embora as coisas humanas não se caracterizem por uma grande seriedade, mesmo assim é necessário ser sério, ainda que issonão contribua para nossa felicidade... É preciso tratar com seriedade aquilo que é sério enada mais. Só Deus é digno de suprema seriedade, e o homem nçao passa de um joguete de Deus, e é esse o melhor aspecto de sua natureza. Portanto, todo homem e mulher devem viver a vida de acordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suas inclinações atuais... Pois eles consideram a guerra uma coisa séria, embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos desse nome, justamente as coisas que nós consideramos as mais sérias. Portanto, todos devem esforçar-se ao máximo por viver em paz. Qual é, então, a maneira mais certa de viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando em combate." Assim "os homens viverão de acordo com a natureza, pois sob muitos aspectos eles são como fantoches e só possuem uma pequena parte da verdade."

[...]

Sempre que nos sentirmos presos de vertigem, perante a secular interrogação sobre a diferença entre o que é sério e o que é jogo, mais uma vez encontraremos no domínio da ética o, ponto de apoio que a lógica é incapaz de oferecer-nos. Conforme dissemos desde o início, o jogo está fora desse domínio da moral, não é em sí mesmo nam bom nem mau.Mas sempre que tivermos de decidir se qualquer ação a que somos levados por nossa vontade é um dever que nos é exigido ou é lícito como jogo, nossa consciência moral prontamente nos dará a resposta. Sempre que nossa decisão de agir depende da verdade ou da justiça, da compaixão ou da clemência, o problema deixa de ter sentido. Basta uma gota de piedade para colocar nossos atos acima das distinções intelectuais. Em toda a consciência moral baseada no reconhecimento da justiça e da graça, o dilema do jogo e da seriedade, até aqui insolúvel, deixará de poder ser formulado.

3 comentários:

flip disse...

Massa, não conheço o livro, mas percebi uma conexão Marx-Marcuse-Mauss, MMM... meio naturalista (fala de sociedade conectando aos animais), mas tá valendo... boa indicação.

Alê: o Pereira disse...

pois tem uma pilha nesse sentido naturalista, mas uma das coisas mais legais desse livro é que o Huizinga não tenta catequizar ninguém, ou tenta muito pouco. Ele usa alguns elementos da história comparada de religiões, umas pitadas de conclusões de antropologia e um bocado de deduções da filologia pra chegar nos costumes e manifestações culturais do homem desde o neolítico (ou no mínimo no seu estado "indígena", "selvagem") até o contemporâneo (no caso do livro, 1938).
vale a pena e dá pra ler em uma sentada porque é duma linguagem bem acessível.

ana disse...

Obrigada pela indicação do livro! Eu tava atrás de saber quem era o autor de umas frases soltas que ouvi, e encontrei aqui no blog de vcs. Valeu!