segunda-feira, 8 de junho de 2009

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Enquanto as tarefas alienadas do cotidiano da prática espetacular da arquitetura continuam seu curso, nos permitimos uma perambulação mais teorizante no maciço, porém leve "Uma Nova Agenda para a Arquitetura" (ou aqui no Google Books). Organizado por Kate NESBITT e contando com uma seleção dos principais artigos do após-o-moderno, o livro serve como uma ampla e breve passagem pelos escritos sobre arquitetura da segunda metade do séc. XX e início do XXI. Resolvi selecionar apenas um, que transcrevo aqui na esperança de, de certo modo, fazer dialogar os dois aspectos principais desse blog: uma crítica materialista-dialógica da realidade e o metier da arquitetura, urbanismo e planejamento.


AGREST, Diana e GANDELSONAS, Mario:

Semiótica e Arquitetura: Consumo ideológico ou trabalho teórico
(parte um de dois)

De maneira geral, as teorias da arquitetura e do design tendem a perpetuar a estrutura básica da sociedade ocidental e ao mesmo tempo manter o design como uma operação legítima dentro da ordem estabelecida. Os autores questionam esse papel adaptativo da teoria da arquitetura analisando a incorporação da semiótica como um "bloqueio teórico". Afirmam que a teoria somente poderá ser considerada como uma produção de conhecimento se houver uma completa transformação de sua base ideológica.

Nos últimos vinte anos, houve uma extraordinária intensificação da produção de "teoria" da arquitetura e do design, que destacam o papel especial da teoria arquitetônica que se desenvolveu continuadamente ao longo de cinco séculos.A Função das "teorias", hoje como antes, tem sido de adaptar a arquitetura às necessidades das formações sociais ocidentais(1), servindo de elo de ligação entre a estrutura global da sociedade e sua arquitetura. (2) Dessa maneira, a arquitetura tem se modificado para responder à mudança das demandas sociais, incorporando-se à sociedade mediante operações "teóricas". As mudanças correspondentes introduzidas pela "teoria" na prática arquitetônica atuam no sentido de perpetuar a estrutura básica da sociedade e, ao mesmo tempo, de manter a própria arquitetura como sua instituição dentro das formações sociais ocidentais. (3)

Em um artigo anterior(4), definimos o processo de produção do conhecimento como um projeto teórico que não visa nem à adaptação da arquitetura às "necessidades" das formações sociais nem à manutenção da instituição como a conhecemos. Nesse ponto específico, já nos referimos à teoria em sentido estrito como oposta à "teoria" adaptativa, que chamamos de ideologia.

A ideologia pode ser definida como um conjunto de represwentações e crenças – religiosas, morais, políticas, estéticas – a respeito da natureza, da sociedade, da vida e das atividades dos homens sobre a natureza e a sociedade. A ideologia tem a função social de manter a estrutura global da sociedade induzindo os indivíduos a aceitar em suas consciências o lugar e o papel que essa estrutura lhes designa. Ao mesmo tempo, a ideologia atua como um obstáculo ao verdadeiro conhecimento, impedindo a constituição da teoria e seu desenvolvimento.

A função da ideologia não é produzir conhecimento, mas opor-lhe obstáculos. De certo modo, a ideologia alude à realidade, mas somente oferece dela uma ilusão(5). A soma de todo o "conhecimento" arquitetônico ocidental, das insituições do senso comum às complexas "teorias" e histórias da arquitetura, deve ser vista mais como ideologia do que como teoria. Essa ideologia já proclamou satisfazer as necessidades práticas da sociedade por meio da organização e controle do ambiente construído. Para nós, no entanto, a função subjacente dessa ideologia é mais pragmática, a de simultaneamente satisfazer e preservar a estrutura global da sociedade nas formações sociais ocidentais. Ela contribui para a perpetuação do modo capitalista de produção, bem como para a prática arquitetônica como parte dele. Assim, mesmo que a ideologia proporcione um conhecimento do mundo, é um conhecimento determinado, limitado, deurpado por essa função predominante.

Pensamos que há necessidade de uma teoria, mas que ela seja claramente diferenciada da "teoria" adaptativa ou do que estamos chamendo aqui de ideologia arquitetônica. Nesses termos, a teoria da arquitetura é o processo de produção de conhecimento que toma por base uma relação dialética com a ideologia arquitetetônica; ou seja, a teoria se desenvolve a partir da ideologia e ao mesmo tempo se coloca em posição radical a ela. É essa relação dialética que distingue e separa a teoria de ideologia.

Em oposição à ideologia, propomos uma teoria da arquitetura, necessariamente fora da ideologia. Essa teoria descreve e explica as relações entre a sociedade e os ambientes construídos de diferentes culturas e modos de produção(6). O trabalho teórico não tem como matéria prima nenhuma coisa concreta ou real, mas crenças, noções e conceitos sobre essas coisas. As noções são transormadas por meio da aplicação de determinadas ferramentas conceituais, e o produto é o conhecimento das coisas(7). A ideologia arquitetônica, como parte integrante de uma cultura e de uma sociedade burguesas, supre parte da matéria-prima sobre a qual devem atuar as ferramentas conceituais.

As relações entre teoria e ideologia podem ser caracterizadas como uma luta permanente, na qual a ideologia defende um tipo de conhecimento cuja finalidade principal é mais a conservação dos sistemas sociais existentes e de suas instituições do que a explicação da realidade. A história contém muitos exemplos dessa relação. A Igreja [católica] apoiou durante séculos a teoria ptolemaica do universo, que corroborava os textos bíblicos, contra outros modelos que poderiam explicar com mais exatidão a mesma realidade. A teoria coperniciana, ao contrário, foi o resultado de uma transformação conceitual dentro da ideologia. Copérnico destruiu literalmente o sistema geocêntrico de Ptolomeu e desprendeu sua teoria desta ideologia "projetando a terra nos céus"(8). A condenação de Copérnico pela Igreja e a tentativa de cancelar um novo conceito do universo no qual o homem estava mais no centro do mundo e onde o cosmos não se organizava mais em torno dele, mostr um outro aspecto dessa luta. A ideologia teórica, que originalmente se opôs a concepção cosmológica coperniciana, acabou por absorvê-la para reacomodar a estrutura teórica. Cabe distinguir duas etapas nessa relação dialética entre teoria e ideologia: a primeira é a de transformação produtiva, quando a ideologia é inicialmente transformada para prover uma base teórica ; a segunda é a da reprodução metodológica, quando a teoria é elaborada como entidade separada da ideologia. Os estudos de Copérnico correspondem à primeira etapa, em que o trabalho teórico consiste essencialmente na subversão de uma determinada ideologia.

A arquitetura ainda está à espera de um Copérnico para iniciar a primeira etapa da explicação teórica. A verdade é que apenas recentemente começamos a nos dar conta da necessidade de analisar as relações entre teoria e ideologia.

Diversas ideologias arquitetônicas têm aparecido de modo mais ou menos sistemático, como evidencia o uso ambíguo da denominação " teoria". Essa ambiguidade tem se acentuado recentemente em teses pseudoteóricas, que usam modelos provenientes de diferentes campos do conhecimento, como a matemática, a lógica, o behaviorismo ou a filosofia. Quando aplicados à arquitetura, esses modelos introduzem uma ordem superficial, mas deixam intacta a estrutura ideológica subjacente. A invtrodução de modelos tirados d outros campos do conhecimento deve ser vista como consumo ideológico e como um modismo temporário no plano da técnica (9). Mas o consumo de teorias que podem ser pensadas em sí como instrumento para o desenvolvimento da teoria sobre a arquitetura atua como uma forma especial de obstáculo ideológico, que denominamos bloqueio teórico.

Muitas teorias que se apresentam como teorias numa acepção estrita são, na realidade, justo o oposto. Elas funcionam como obstáculos à produção teórica. Mas muitas das " teorias semióticas da arquitetura" produzidas recentemente constribuem tão-somente para o consumo de uma teoria da semiótica, a qual, a nosso ver, poderia propiciar uma série de instrumentos úteis para a produção de conhecimento sobre a arquitetura. Essas teorias são a essência de um bloqueio teórico.


[FIM DA PARTE 1]

Notas:

1. Formação social (formatio sociale) é um conceito marxista que designa a " sociedade". " A formação social é a totalidade complexa concreta que compreende as práticas econômica, política e ideológica, num lugar e num estágio determinados de desenvolvimento." Louis Althusser, For Marx. Nova Iorque: First Vintage Books, 1970, p, 251.
2. Há outras funções das teorias da arquitetura e do design que não mencionamos neste artigo, isto é, a teoria cuja função é estabelecer determinado ordenamento das operações de projeto dentro da prática arquitetônica.
3. As transformações ocorridas na sociedade introduzem reformas que permitem a sobrevivência do sistema vigente. Contudo, essas mudanças nunca são verdadeiras - pois as relações estruturais permanecem intocadas - , mas meras transformações daquele sistema. Por exemplo, o desenvolvimento do modo de produção capitalista em diferentes estágios - mercantilismo, capitalismo industrial, imperialismo, etc - baseou-se numa série de transformações realizadas em diferentes domínios, mas que não modificaram de forma alguma a estrutura de classes.
4. Diana Agrest e Mario Gandelsonas, "arquitectura/Arquitectura", Materia, Cuadernos de Trabajo. Buenos Aires, 1972.
5. Para sermos mais exatos, deveríamos falar em ideologias no plural, ainda que, neste artigo, estehamos tratando de uma ideologia específica, a ideologia burguesa.
6. Esta é uma definição parcial do objeto específico deste artigo: a relação entre teoria e ideologia arquitetônica. Esse caráter parcial decorre do fato de que o importante problema teórico da relação entre a prática arquitetônica e o inconsciente (Freud) não foi considerado neste artigo.
7. Procuramos seguir aqui o capítulo "Metodologia", em Karl Marx, Introdução a Crítica da Economia Política, recentemente analisado por Althusser, em Pour Marx. Essas duas obras são uma base fundamental para qualquer abordagem materialista dialética da teoria em contraste com as formas de concepção idealista da teoria. Ver a classificação althusseriana da teoria idealista como "empirismo", e "formalismo". Usamos este termo, no entanto, com o objetivo de contrastá-lo com o que se deve considerar hoje simplesmente como concepção ocidental da teoria e para enfatizar seu caráter provisório como etapa atual no processo de desenvolvimento de uma teoria mais geral das ideologias.
8. Alexander Koyre, La Révolution Astronomique. Paris: Hermann, 1961, p. 16.
9. Diana Agrest, Epistemological Remarks on Urban Planning Models, palestra no IAUS, Nova Iorque, 1972.


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