domingo, 1 de março de 2009

Alguns retalhos críticos sobre Harvey e Reforma Urbana no FSM 2009


Lendo um texto de David Harvey, encorajei-me em escrever algo sobre. O texto a que me refiro é a palestra de abertura da tenda de Reforma Urbana de 29 de Janeiro de 2009, no Fórum Social Mundial em Belém do Pará. Harvey, em sua palestra, encontra um tom de certa forma conciliatório entre as esquerdas, fato bastante útil num encontro como este. Porém não queremos reproduzir o que Harvey já disse, tão pouco temos compromisso com qualquer projeto pré-formatado de sociedade, portanto nos demos à liberdade de explorar. Reproduzo, aqui, alguns retalhos críticos.


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Quando Harvey fala do “direito à cidade”, assunto já tratado (e maltratado, diga-se de passagem) por muitos autores, coloca em termos corretos, do nosso ponto de vista: Eu tenho trabalhado já há algum tempo com a idéia de um direito à cidade. (...). O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história, vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas. Assim, nessa luta pelo direito à cidade haverá também uma luta contra o capital.


Porém, no decorrer do texto, tentando ressaltar a importância desta luta, Harvey parece deixar de lado algumas coisas importantes que já não podemos deixar de tratar em qualquer visão que se pretenda global. A primeira é a Reforma Agrária, luta complementar da Reforma Urbana, que tantos frutos na luta contra o capital tem rendido na América Latina. Uma questão de como se produz e distribui os alimentos, em primeiro nível. A segunda é a questão ambiental, que de certa forma reúne as duas lutas (urbana e agrária) numa pauta atualizada e dá o correto caráter de urgência. A questão ambiental serve tanto de aglutinadora de movimentos quanto de instrumento para esta aglutinação de forças e sua intersecção parece uma das poucas saídas para tratarmos uma ampla gama de questões de sobrevivência. Há, porém, de se ter cuidado com termos como “ecosocialismo” de Michel Lowy, é como dizer bioarquitetura, por exemplo. O socialismo é um outro tipo de relação social que vê o ser humano como parte da natureza que não precisa lutar pela sobrevivência, contra a natureza, mas sim a favor desta, trabalhando a fartura que é possível construir a partir do manejo adequado e racional de recursos existentes e esgotáveis. Assim como a “bioarquitetura” é a mesma boa e velha arquitetura que trabalha nestes mesmos parâmetros de imanência, é mais atual, mas ainda é arquitetura, arquitetura do ambiente.


Assim, tanto no “socialismo”, palavra gasta e classificadora de atitudes perante o mundo, quanto na arquitetura, em nome da qual se fazem as mais irracionais e gigantescas transformações de matéria, existe um tipo de relação social humana (, ou moral, ou de pensar o mundo, como queiram), que é governada pelo valor (valor de troca e valor de uso – que já pressupõe o primeiro). A forma mais trivial de manifestação deste fato, e também a mais enigmática, é que, nas sociedades contemporâneas, a maioria dos bens materiais e simbólicos circulam sob forma de mercadoria. A mercadoria é, hoje, o modo sob a qual se dá a mais ampla gama de socializações: do estado às instituições filantrópicas, da arte aos espaços urbanos, das leis aos juízes, da escola à filosofia. Assim, um dos maiores méritos de Karl Marx não foi, como pensam os marxistas, ter posto a luta de classes como o motor da história, mas ter desvendado esta forma valor e sua decorrente forma de socialização, a mercadoria. Segundo Marx, o capitalismo necessita de crises pra se regular quando o estado, seu instrumento regulatório consciente, não funciona adequadamente. Harvey expõe da seguinte forma:


“... a forma com que o capital opera nas cidades é uma de suas fraquezas. Assim, eu acredito que, dessa vez, a luta pelo direito à cidade está no centro da luta contra o capital. Nós estamos vivendo agora, como todos sabem, uma crise financeira do capitalismo. Se nós olharmos para a história recente, nós descobriremos que ao longo dos últimos 30 anos houve muitas crises financeiras. Alguém fez os cálculos e disse que desde 1970 houve 378 crises financeiras no mundo. Entre 1945 e 1970 houve apenas 56 crises financeiras. Portanto, o capital tem produzido muitas crises financeiras nos últimos 30 ou 40 anos. E o que é interessante é que muitas dessas crises financeiras têm origem na urbanização. No fim da década de 1980, a economia japonesa quebrou, e quebrou por conta da especulação da propriedade e da terra. Em 1987, nos Estados Unidos, houve uma enorme crise, na qual centenas de bancos foram à falência, e tudo se deveu à especulação sobre a habitação e o desenvolvimento de propriedade imobiliária. Nos anos de 1970 houve uma grande crise mundial nos mercados imobiliários. E eu poderia continuar indefinidamente, dando-lhes exemplos de crises financeiras com origens urbanas. Meu cálculo é que metade das crises financeiras dos últimos 30 anos teve origem na propriedade urbana. As origens dessa crise nos Estados Unidos estão em algo chamado crise das hipotecas sub prime. Mas eu chamo esta crise não de crise das hipotecas sub prime, e sim de crise urbana.”


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Argumentando com a dificuldade dos capitalistas em encontrar saídas rentáveis para o excedente de capital, o qual investem na compra de ativos, ações, direitos de propriedade, inclusive intelectual, e, é claro, em propriedade imobiliária ao invés de investir na produção de usos concretos, o que geraria mais empregos e daria mais vida útil ao capitalismo, argumenta que (...), desde 1970, cada vez mais dinheiro tem sido destinado a ativos financeiros, e quando a classe capitalista começa a comprar ativos, o valor destes aumenta. Assim eles começam a fazer dinheiro com o crescimento no valor de seus ativos. Com isso, os preços da propriedade imobiliária aumentam mais e mais. E isso não torna uma cidade melhor, e sim a torna mais cara. Assim, cria-se uma situação em que os ricos podem cada vez mais exercer seu domínio sobre a cidade, pois essa é forma que encontram de usar seu excedente. O caso dos diversos empreendimentos que visam atender a demandas como a copa do mundo e a necessidade da classe média imitar os ricos em campos de concentração chamados “condomínios fechados”, por exemplo, não é uma questão de distribuição de trabalho entre arquitetos como tenho ouvido de alguns desavisados. Parece ser, isto sim, mais um passo em direção à crise urbana, à valorização irracional carimbada pelo estado e a crise ambiental das cidades de forma geral, não só de Porto Alegre.


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Em suma, Harvey nos instrumentaliza com atualíssimos argumentos de luta de classes no meio urbano, relativos a um conceito em construção, o conceito de Reforma Urbana. Se em número de crises, as urbanas parecem importantíssimas, em qualidade, as ambientais parecem mais graves. Portanto caberia um conceito de Reforma Ambiental, uma chave da qual partissem Reforma Agrária e Reforma Urbana numa visão integrada de ser humano e natureza em busca de novas relações sociais e, por conseqüência e causa, de produção. Uma reforma ambiental só poderia fazer o ser humano encontrar-se com seu conceito, livrá-lo do mimetismo de competição e dominação da natureza para começar a integrar-se, manejar recursos com ganhos para todos. Instrumentos já existem, a agroecologia, a permacultura, a agricultura urbana, a bio-construção. Cabe a nós integrar estes conceitos na produção de alimentos, no urbanismo, na arquitetura. Cabe a nós, para mais além de tudo, tornarmo-nos livres e, como disse Slavoj Žižek:


“Hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal ‘pós-ideológico’ – ou não significa nada.”


Questionar o consenso democrático-liberal, primeiro, porque não é democrático, funciona através de urnas numa escala totalmente imprópria e não legítima; segundo, porque não é liberal, é escravo do valor e da forma mercadoria; terceiro, porque não é pós-ideológico, é completamente ideológico, apenas a ideologia não nos é visível, pois se forma quando agimos cotidianamente reproduzindo o que os donos da maior parte dos bens concretos ou imateriais circulantes ditam de suas salas climatizadas.


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Assim apoiamos o experimentalismo, o método do erro e acerto, de aproximações sucessivas, nosso experimentalismo na arquitetura, nos materiais, nas relações de produção da edificação, nas relações humanas geradas na poiese e na poesia da construção, com a certeza de que a mudança não se dará mais por vias burocráticas, eleições ou “revoluções estatais”. Não se produz autodeterminação a partir de cima, não se cria seres humanos a partir de estruturas piramidais ou de árvore. Como será? Melhor perguntar como vem sendo. Nosso projeto é infinito, local, auto-questionador, se move na velocidade do sonho. Portanto a Reforma Urbana só pode ser um conceito em construção. Construção permanente, aliás.

2 comentários:

Alê: o Pereira disse...

Mas bá! Nessa tu foste muito bem cara! Sem nada de hermetismo, tudo muito compreensível, comunicável.

Sim, a tal Reforma (ou será revolução?) Ambiental deve ser o passo para integrar, ao invés de analisar, as contradições em soluções. Fundar parâmetros sempre semi-novos e já obsoletos pelos quais faremos as próximas ações antes da crítica que invariávelmente as seguirão numa espiral ação-crítica-ação ou crítica-ação-crítica, tanto faz porque cada vez mais uma é a outra e fica caduco querer separá-las.

Nossa atuação, muito longe de ser a de levar uma migalha pra casa pra alimentar nossas ratazaninhas, é a de cada vez mais se afastar da sobrevivência - em nome de um "prazo de validade" sempre postergado, mas nunca encarado de frente - e buscar a vida como objetivo final.

CAMINHADA, processo, mas encarando a imanência - aquela tão nefasta e rica condição inicial em que estamos antes de toda ação/crítica - e encarando também as contradições. Buscando resolver as causas junto com os sintomas, sem ignorar que ambos exercem seu papel.

O Harvey faz um papel importante, que é o de tirar um pouco o foco das obviedades e do deslumbramento com o Obama e com o "mundo-novo" a ser fundado a partir disso. Faz isso bem, lucidamente, mas deixa-se ser raso, confunde o financeiro com o valor, assim como confunde este último com moeda, abstrações e esses símbolos que usamos para nos comunicar através da grana.

A questão fundacional aqui é a forma-valor, essa contradição, essa mediação entre o mundo e o sujeito, entre determinação e aquele que faz

A partir daí toda a cidade produzida na nossa civilização é uma ferramenta de desenvolvimento do capital.

Por outro lado, o poder da palavra alternativa, que aponta pra aquilo que não é oposto, não é antitético, mas já não é o mesmo, já tem o germe da diferença que pode ser (ou pode ainda não conseguir) apontar para esta libertação da forma-valor tão necessária. Ainda mais, essas cidades que conhecemos hoje não necessariamente são ícones a serem queimados, destruídos. Confusão comum é a de achar que o espaço apropriado capitalisticamente tem de ser capitalista, ou traz a contradição capitalista obrigatoriamente consigo. Gosto de pensar que não. Apesar de haver tipos e tipos de espaço e da forma jogar forte com os conceitos de sociedade, há uma certa neutralidade ou uma ambivalência no espaço que permite à sociedade fazer dele o uso que precisar.

Enfim, vamos continuando a afiar as nossas ferramentas e a pensar nessa reforma do ambiente que a solução cada vez se clareia mais, apesar das chamadas "crises".

LUZIMAR disse...

Olá prazer estar aqui nesse cantinho e ler texto tão interessante.

Muito bom voltarei sempre.


beijos