sábado, 22 de novembro de 2008

SYZYGY

Eis o que muitos de nós arquitet@s tentamos dizer: syzygy!

SIZÍGIA

Por Felipe Fortuna

Jornal do Brasil, Caderno Idéias & Livros, Sábado, 22 de novembro de 2008

Sempre que me envolvo em alguma discussão sobre vanguarda – e sobre as frágeis fronteiras entre as artes – penso na palavra sizígia. Para muitos, sizígia deve ter o efeito de rosebud, a palavra enigmática que explica e traz novas dimensões ao filme Cidadão Kane (1941). Sizígia significa, em astronomia, a situação na qual três corpos celestes permanecem, em algum momento, perfeitamente alinhados. Assim sendo, quando a lua, o sol e o nosso planeta se encontram na mesma linha reta – surge a sizígia (cuja raiz grega significa, justamente, conjunção ou união). Uma parte considerável das vanguardas parece buscar esse instante aleatório de harmonia durante o qual, em vez de destruição ou aniquilamento, passa a existir unidade que cria um objeto ou um fenômeno inteiramente novo. Seja na pintura, na literatura ou na música, o artista tenta muitas vezes introduzir elementos inesperados e intangíveis: o cubismo seccionou as imagens em novos planos visíveis; o enredo de um romance passou a ser a aventura lingüística, não os episódios fictícios; o tempo da melodia também se traduziu por emissão de luzes.

A primeira vez que li a palavra sizígia foi em Wordplay (1992), do artista gráfico John Langdon. No livro, a palavra grafada em inglês – syzygy – ganhou contornos ainda mais espetaculares do que em português – uma vez que exibe três letras iguais alinhadas por três letras diferentes, ou vice-versa, como se trouxesse a definição do conceito na sua existência material. A palavra também serviu para que John Langdon exercitasse, uma vez mais, a arte em que se mostra magistral: a do ambigrama.

O ambigrama é uma palavra estruturada a partir das suas relações de simetria, podendo ser lida, sem mudanças, de pelo menos uma posição oposta. Um aviso como o que se encontra, em inglês, numa academia de ginástica (“NOW NO SWIMS ON MON”, “Agora não se nada na segunda-feira”) pode ser perfeitamente lido de cabeça para baixo, uma vez que é simétrico a partir de um eixo horizontal. Em Wordplay, John Langdon se confessa inspirado pela representação de opostos e por sua harmonização, segundo conceitos que remontam ao taoísmo e à filosofia zen. O logotipo fundamental para a sua visão de simetria e do ambigrama é a representação do Yin e Yang, a circunferência que contém seus espaços igualmente preenchidos pelo branco e pelo preto e, dentro de cada uma dessas cores, dois pequenos círculos com as cores opostas. Com base nesses princípios, o artista gráfico começa a pesquisar modelos matemáticos e chega às obras de M. C. Escher, quando finalmente reconhece: ao pesquisar os pólos opostos, “sem qualquer surpresa, eu tentei fazer com as palavras o que Escher tinha feito com prédios, pássaros e peixes.”

Considere-se um ambigrama como seagulls (“gaivotas”) e toda a sua expressiva idealização do reflexo sobre a superfície do mar, além das linhas leves e arredondadas que se equiparam a asas. Considere-se também bridges (“pontes”) com sua tipografia a lembrar o material bruto da construção, que ainda sustenta, pequena, a letra i. A palavra bridge é em si mesma simbólica da conexão que se pode fazer entre um lado e o outro lado. Ambos os ambigramas podem ser encontrados, entre muitos outros, na página que seu autor atualmente mantém em www.johnlangdon.net, sempre lembrando que ele conseguiu construir um ambigrama com seu próprio nome. Na época em que li Wordplay, porém, dois belos ambigramas chamaram a minha atenção: Sometimes/Never e Perfection, que se utilizam da forma circular e da repetição ao infinito.

Em nenhum momento do livro – e tampouco em Inversions (1989), de Scott Kim, e Ambigrammi (1987), de Douglas Hofstadter – se menciona o poema visual ou o poema concreto. O princípio motriz das pesquisas de todos esses desenhistas gráficos, matemáticos e filósofos é a existência da sizígia entre, por exemplo, o taoísmo, a física e a palavra. Por vias completamente desconhecidas da série literária, e sempre de modo inesperado, as criações surgidas dessas pesquisas passam a ter evidente relevância para o debate sobre vanguarda e sobre os rumos do poema, este com o peso quase secular da “crise do verso”.

Por ora, parece importante lamentar a persistência daquilo que o cientista e romancista C. P. Snow chamou, em 1959, de “as duas culturas”: a separação entre os saberes científicos e os saberes humanistas. Talvez a vanguarda histórica – e, a partir de então, todas as vanguardas – possa demonstrar esse impulso de religação de tudo o que, na vida e na arte, deveria constituir um só elemento. Paradoxalmente, até mesmo a poesia concreta mereceria ser questionada em sua ambição verbivocovisual, pois estaria confundida a muitas outras manifestações semióticas: Marjorie Perloff, em Radical Artifice (1991), livro no qual comenta a poesia na era da mídia, não pressente diferenças entre o poema “Código”, de Augusto de Campos, e algumas placas de carro norte-americanas que estampam outros jogos de palavra. Controvertidas como sejam as vanguardas (bem como suas intenções e seus resultados), não se deve esperar a predominância de uma linguagem que descarte as demais: utopicamente, só mesmo um alinhamento em sizígia evitaria a cizânia.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Estruturas: variação, conexão e liberdades

A [contra-]tradição Moderna de Le Corbusier
No princípio do século passado, o arquiteto Le Corbusier pontuava seus 5 pontos (os pilotis, a planta livre, a fachada livre, as janelas em fita e o terraço jardim) como soluções a arquitetura que abarcariam, de uma só vez, o retorno às estruturas clássicas e a libertação do sujeito moderno da compartimentação e descontinuidade dos espaços promovida pelos movimentos correntes na arquitetura de então. Ainda mais, pretendiam alcançar a produção de uma nova sociedade através da ordenação correta dos fluxos e comunicações dos espaços privados e públicos.
No urbano, isso se traduz no Plan Voisin e demais planos utópicos modernistas a partir da tabula rasa, da liberação do solo urbano e da criação de comunidades suspensas, organizadas e planejadas através da continuidade estrutural, segregação dos usos e liberdade de circulação.

A retomada Situacionista da busca pela libertação da subjetividade
Em meados desse mesmo século, a Internacional Situacionista (IS) sugere uma nova libertação do sujeito, desta vez de todo e qualquer sujeito, sugerindo soluções através da revolução de toda a sociedade. Esta libertação, desta vez, é a própria libertação da Crise do capitalismo, do Espetáculo, do Mito do Herói – a busca pela experiência do espaço urbano, pela vivência integral do vivido. Estes são aspectos da própria crise da objetivação da subjetividade, ou seja, do tornar coisas as pessoas, de mediar todas as relações por matéria ou abstrações de materialidade (como o dinheiro) que distanciam o sujeito (aquele que faz) do desejo de sua ação (sua vontade de fazer) a ponto de esta última estar alienada ao primeiro, de sê-lo estranha, alheia, de impossível reconciliação, relegada à abstração fundamental do valor[1].
O artista plástico Constant Nieuwenhuys, membro fundador da IS em 1957 provoca a tradição moderna através de seu próprio ferramentário. Parte da visão de sociedade futura que prevê o fim da labuta – da necessidade de trabalho não-prazeiroso – através da automação total da produção e o início da sociedade do jogo na figura do homo-ludens – evolução social do homo-sapiens. Para esta sociedade liberta, o espaço não necessitaria seguir as funções modernas – trabalhar, habitar, recrear e locomover – mas apenas provêr oportunidades para o jogo: a deriva – a livre experiência dos espaços pelos sujeitos – e a construção de situações – jogos de ambiência e comportamento que colocam o fazer arte no cotidiano, a vida jogo, a vida arte.
Essa visão de sociedade tomou forma em inúmeras maquetes, pinturas, plantas, collages, impressões, filmes, gravuras, palestras e manifestos sobre New Babylon (Nova Babilônia), uma cidade-utopia que se colocaria por sobre a superfície da Terra, eventualmente cobrindo todo o planeta. Ela, como no Plano Voisin, suspenderia as atividades e deixaria o solo livre para circulação de veículos, pessoas e criação de imensos parques. Nos planos superiores, uma imensidão de espaços labirínticos em multiplos níveis, com características ambientais perfeitamente controláveis espontaneamente por qualquer de seus ocupantes – ou por “equipes situacionistas” – oportunizariam a criação das situações constante e continuamente, num jogo sem cessar de liberdade e exercício de subjetividade. “A vida social se torna jogo arquitetônico. Arquitetura torna-se a pulsante expressão dos desejos em interação”[2].
O tornar-se concreto das críticas sociais feitas ao Espetáculo e à alienação foi o pomo da discórdia entre Constant e Guy Debord, um dos fundadores e o principal expoente situacionista. Debord já era então conhecido por sua pureza conceitual e promovera o desligamento de diversos membros da Internacional Letrista – que precedera artisticamente a Internacional Situacionista – e desta última até o ponto de praticamente ser o único “aceito” como seu condutor. É, no entanto, Constant quem decide sair da Internacional Situacionista em 1959 por perceber que o movimento se afastava da crítica a cidade. Em entrevista em 1999 sobre as críticas de Debord ao seu trabalho posteriormente a seu desligamento da IS declara: “Eu não queria mais aquele contato , pois eu estava continuando de minha própria maneira e isso me afastou dos situacionistas. Debord e os outros situacionistas, voltaram-se mais e mais para a política, para afirmações políticas. A preocupação com o urbanismo, o Urbanismo Unitário estava desaparecendo lentamente.”
Fora este aspecto purista da IS, é valida a crítica a obra de Constant como promotora, ao mesmo tempo, da mais ampla liberdade e do potencial de controle absoluto. Esta contradição imanente às estruturas livres é aceita como não resolvida pelo próprio Constant que, de certa maneira, assume o caráter dúbio das estruturas (utópicas) na formação da sociedade: por um lado determinam o comportamento possível, por outro este comportamento é capaz de alterar profundamente sua função[3].
Em contraste a pesquisa plástico-formal-propositiva de Costant, escreve Debord sobre as tentativas de “realização” – de tornar real a crítica – da tese central sobre a vivência da cidade da IS, o Urbanismo Unitário, na Alemanha: “A contestação da sociedade atual no seu conjunto é o único critério de libertação autêntica, seja no âmbito das cidades, seja em qualquer outro aspecto das atividades humanas. Se assim não for, a ‘melhora’, o ‘progresso’, será sempre destinado a azeitar o sistema, a aperfeiçoar o condicionamento que necessita ser derrubado no urbanismo e em toda parte.”. Portanto, torna-se impossível qualquer tentativa de realização quando não for este movimento também total. Analogamente às criticas a Constant, Debord critica artigo de Henri Lefèbvre na Revue Française de Sociologie: “ O titulo do artigo ‘Utopia experimental: por um novo urbanismo’ [de Lefèbvre] já mostra todo o equívoco. Pois o método da utopia experimental, para corresponder de fato ao seu projeto, deve evidentemente açambarcar a totalidade, isto é, sua execução não deve levar a um ‘novo urbanismo’, mas a um novo uso da vida, a uma práxis revolucionária.”[4]
Vidler[5] cita Adorno para dizer que esta seria a própria contradição das utopias modernas, relacionando portanto Constant com a tradição do princípio do século XX. Em ambas, argumenta Vidler, há um desejo de descolamento da realidade – de utopia – que se contrapõe à sociedade opressora no mesmo momento em que busca não ser visto como utópico, de modo a “não ser culpada de administrar conforto e ilusão”[6].
O limite de Constant seria então sua própria ferramenta de libertação: a não definição de suas soluções na forma diagramática de sua apresentação[7] permite sua re-interpretação não em termos literais, materiais, mas em indicativos de possibilidades. Constant não presumia-se capaz de apontar as soluções para a cidade futura, nem mesmo se considerava responsável por realiza-la através da forma construída somente. Ao contrário disso, determinava-se a partir das formas existentes de cidade para negá-las e através de um diagrama utópico, apontar para possibilidades de futuro. Dessa maneira, se não resolve o dilema entre as diferentes naturezas das estruturas do espaço, tece, de maneira sensível e tensionada, uma relação dialética entre modelos contraditórios: de um lado, (mega)estruturas totalizantes que caracterizam e dão suporte ao todo, de outro, (micro)preenchimentos dinâmicos, labirínticos e eternamente incompletos.
Por outro lado, há também um movimento de negação e afastamento da cidade existente que já não é o do detournment: o fato de suas utopias pairarem por sobre a forma construída. Desse modo, exibem a impossibilidade de solucionar a cidade a partir da forma atual, rejeitam a sociedade e a expressão construída de sua cultura através do afastamento quase que completo, que, no mínimo, busca a compartimentação daquilo que é versus o porvir.
Semelhante neste aspecto está a tradição moderna e suas sucessivas críticas: Ville Radieuse, as cidades idealizadas dos construtivistas Chernikov e Leonidov, as mega-estruturas de van Eyck, Bakema, Woods e Yona Freedman e a releitura dos CIAM do TEAM 10.

Algumas reformulações contemporâneas
É a partir dessa bagagem crítica do moderno heróico que, ao final do século XX a figura auto-mitificadora de Rem Koolhas surge tratando destes temas de maneira ao mesmo tempo revigorada e carregada das mesmas contradições de ambos os movimentos. Por um lado, expõe em seus trabalhos iniciais como Delirious New York as estruturas compositivas das metrópoles capitalistas amadurecidas que, em Manhattan, teriam um de seus exemplos mais expressivos.
Nova Iorque seria um sistema de liberdade e autonomia para as peças individuais, ao mesmo mtempo em que as absorvia em sistemas-envolvente reguladores. Na análise de Koolhas, a grelha retangular funciona como o libertador dos movimentos, ao prover todos os pontos com acessibilidade máxima através da conectividade e da regularidade dos contatos. Por outro lado, esta estrutura em grelha é justamente o limitador geométrico base para a variação lote a lote: nenhum equipamento poderá se sobressair da estrutura completamente ao estar envolvido pela grelha democratizante.
O segundo grau de complexidade ocorre dentro dos lotes, mais especificamente na composição dos arranha-céus: a autonomia total entre andares permite a total indefinição programática e o descontrole funcional (em termos de planejamento das atividades) envolvidos em uma unidade coesa que é a torre do arranha-céus. Citando Koolhaas “Através do arranha-céu, cada lote da Metropolis acomoda – em teoria ao menos – uma instável e imprevisível combinação de atividades superpostas e simultâneas, cuja configuração está fundamentalmente além do controle do arquiteto ou planejador”[8].
Nesta composição há a libertação do conteúdo programático dentro dos envelopes estabelecidos. Para tanto, ocorreria o jogo de duas características-chave dos arranha-céus: a primeira é a estratificação independente vertical; a segunda é a unicidade criada pela pele envolvente independente, por sua vez, das atividades internas. “A genialidade de Manhattan é a simplicidade de seu divórcio entre aparência e performance: ela mantem a ilusão da arquitetura intacta, enquanto entrega-se de todo o coração as necessidades da metropole.”[9]
A formalização da genericidade através da planta-livre e da envolvente “neutra” ou alienada ao conteúdo (as atividades que ocorrem no interior e sua configuração formal) é no entanto limitada e a prática posterior de Koolhaas irá buscar novos limites a configuração estrutural da arquitetura. Em seu ensaio Bigness[10] (a característica de uma determinada edificação de simplesmente Ser Grande) Koolhaas sugere outro patamar de separação: aquele entre os grandes programas e a urbanidade – tanto por sua escala arquitetônica e física quanto por seu impacto urbano concentrado. Estes programas seriam por sí só capazes de “criar” seu entorno, ou seja, serem autônomos às pré-existências e às definições da urbanidade por encerrarem-se em sí mesmos e por criarem tal congestão e intensidade de uso que justificariam-se por sí mesmos.
A partir destas definições, Koolhas lança-se ao projeto para o concurso do Terminal de Zeebruge com a metáfora de uma “Babel Eficaz”. Concentra – em um único envelope de forma geóide – todo a multiplicidade do programa e de suas estruturas. Cria um envólucro unificador capaz de “domar” estruturas absolutamente diferentes, sem necessariamente reconciliá-las em nível mais fundamental. Desta forma, elementos tão diferentes quanto rampas de acesso a veículos, plataformas de embarque às balsas, áreas de hotel, restaurantes, cassino, cinemas e outros programas menores são justapostos e sobrepostos no interior de um todo que busca lhes conferir unidade.
O mote mais saliente nesta proposta é justamente a dissociação entre forma externa e estrutura/atividade interna: enquanto a forma externa é de “difícil classificação”, ela engole os programas, negocia átrios de diversos pavimentos de altura com rampas e plataformas articulados em duas grandes metades do geóide, cortadas no sentido vertical e unidas somente no topo por um imenso domo de vidro com terraços. A forma externa é propositadamente indefinível: volume derivado de um imenso cone com sua ponta menor apontando para baixo e encimado por uma semi-esfera, perfurado aleatoriamente e com a visível intenção criar a sensação de desequilíbrio de massa, com o topo mais “pesado” que a base. Desta maneira, Koolhaas quer evitar o fácil reconhecimento ou a identificação – no sentido que em Adorno define – e tornar o objeto monumental, destacando-se a qualquer custo na paisagem monótona da zona portuária: “como injetar um novo ‘símbolo’ na paisagem que – através da atmosfera e escala somente – torna qualquer objeto tanto arbitrário quanto inevitável”[11].
As atividades internas, enquanto isso, assumem formas bastante utilitárias. As rampas tomam formas diretamente derivadas de obrigações de eficiência geométrica: grandes círculos ao redor do núcleo central. As áreas do hotel e restaurantes são imensas lajes planas com forma de semi-círculo, como que cortadas por linhas radiais ao redor dos átrios que perfuram do topo a base o grande edifício. Escritórios são baias distribuídas perimetralmente junto às paredes externas. As plataformas de acesso aos navios são grandes braços treliçados atirantados ao volume e que se projetam em sua totalidade para fora dele, em direção ao mar. O todo criado por essas justaposições verticais e horizontais busca o monumental tanto interna quanto externamente: há grandes átrios, continuidades verticais através das escadas rolantes e elevadores, a unidade externa citada, as perfurações ciclópicas na casca unificadora e o gigantismo das treliças das plataformas e das bandejas dos acessos de veículos que buscam o estranhamento da escala do edifício em relação à humana. Assim, a lógica estrutural e espacial são também múltiplas e divergentes, unidas apenas na sua subsunção ao todo envolvente.
Diversos projetos do arquiteto holandês progridem nessa exploração formal da dissociação. O edifício Congrexpo em Lille é composto por três programas formalmente independentes, porém conectados e unidos sob o mesmo teto numa assumida “organização das aparências”, enquanto a proposta para a Très Grande Bibliothèque de Paris em 1989 faz ainda um diálogo dessa dissociação com o vazio, tendo como ambição declaradamente “livrar a arquitetura de responsabilidades que não pode mais sustentar e explorar esta nova liberdade agressivamente”, assim, arquitetura teria a missão de criar “novos espaços simbólicos que acomodam o desejo persistente de coletividade”[12].
Neste último projeto, a tradição cartesiana moderna enfrenta o encontro com a aleatoriedade dos vazios. O espaço torna-se um diagrama desta disputa: dezenas de imensas lajes quadradas e perfeitamente ortogonais repetem-se verticalmente sustentadas por nove imensos pilares-elevadores-outdoors distribuídos também perfeitamente ortogonalmente e são “cortadas” por diversos vazios das bibliotecas dentro da grande biblioteca. O programa é visto também como um imenso contêiner: toda a informação do mundo – seja ela eletrônica, analógica, impressa, ou gravada – disponível em um único e gigante objeto urbano. Desta forma o conceito de Ser Grande[13] aparece em sua qualidade obliteradora de individualidades: através de sua escala, é criada a unidade e o sujeito (qualquer que seja) é tornado submisso: é a própria aceitação da condição de Crise.
Desta maneira, torna-se evidente a contradição essencial a esse esforço: por um lado, busca-se criticar as fronteiras das estruturas do espaço e da arquitetura, mas por outro assume-se determinada postura de limitação a crítica – a submissão a condição de estar dentro da crise. Koolhaas mostra como a arquitetura pode ser a antena do caracol, que tateia no escuro da Crise em busca de saídas, mas ao mesmo tempo reproduz de maneira intensa as características mais marcantes dessa Crise na limitação a capacidade de ação do sujeito arquiteto – aquele que concebe o espaço e antevê suas possibilidades – nas condições existentes da sociedade. Desta forma, me parece que clara a postura de ser agente social, mas não a de ser o protagonista na revolução do sujeito e de sua libertação.

Conclusão
É a partir deste viés que chegamos ao que consideramos a condição da arquitetura e das estruturas na libertação do sujeito. A nossa capacidade – enquanto arquitetos – é a de superar as formas existentes na busca pela liberdade de ação do sujeito contemporâneo, seja ele pobre, rico, trabalhador ou empresário. Não entrarei aqui no mérito da questão do sujeito revolucionário pelo próprio diagramatismo das questões aqui expostas. Por outro lado, somos limitados a atual função destinada ao arquiteto e ao projeto arquitetônico na sociedade, que são extrema e historicamente conectadas as maneiras dominantes de produção de cidade.
Nessa discussão, os tipos estruturais nos trazem enormes potenciais de configuração para a variação e liberdade. São o ferramentário para a realização dos discursos, conceitos e críticas a sociedade existente e suas cidades. Desta forma, buscamos o que seja condizente com os desejos de mudança em frente à crise que se desenrola e que apresentem possibilidades de superação a ela. No panorama das críticas sociais, as formulações utópicas têm importância ímpar de propor, para crítica, possibilidades aparentemente factíveis para sua realização. Esta ingenuidade natural – licença poética em nome da revolução das formas – por sua vez promove uma libertação das situações existentes em direção a sua negação e superação em novas maneiras de se viver e habitar.
Esta libertação, por sua vez, tem enorme importância por tentar ir além do que há sem partir de bases já corrompidas pelos seus vícios ou que não necessitem em tese de seus mecanismos sociais para se realizar. A falsa capacidade de clarividência que têm aponta a lampejos do que poderá acontecer, direcionando tanto a crítica quanto a prática profissional para a realização das revoluções e reformas e evoluções necessárias e possíveis.
É em grande parte a este apontar de direção que podemos interpretar diversas novas ferramentas extremamente reais e diretamente aplicáveis e, por isso, fadadas ao fracasso quando postas em contraste com as utopias. O choque entre o que acontece por continuidade com que o existe – e portanto não tem capacidade de libertação efetiva desde seu início, esforço natimorto – e as utopias que rechaçam o existente e buscam a maior autonomia em relação a realidade de que são capazes – e que, mesmo não tendo sucesso completo ou até mesmo sem ser realizadas, condicionam os esforços subseqüentes a ir além e quebrar ainda mais com a base existente.
Nos parece claro, no entanto que esta aparente impossibilidade de realização é inescapável e não deve ser o motivo pelo qual não devamos buscar a realização das críticas. Pelo contrário, ela é a garantia de que nem hoje nem no futuro conseguiremos alcançar as soluções finais propostas pelo racionalismo e por tantos outros movimentos intelectuais, mas que o esforço por libertar-se do existente necessita ser contínuo, até mesmo cotidiano, para alcançar a revolução pretendida.
Dessa maneira, o resgate e articulação das estruturas nas obras de Constant e Koolhas, por mais babilônicas que sejam e mesmo que aconteçam através de processos completamente inseridos na história atual e na sociedade exploradora do capital permitem – como periscópios em submarinos – vislumbrar possibilidades de liberdade condizentes com os conceitos críticos dos quais partimos.
Novamente, o caráter dúbio das configurações se apresenta de maneira a salientar a impossibilidade de ver – de onde estamos – o fim da história e A Revolução tão sonhada em épocas passadas e nos obriga a criticarmos a nós mesmos enquanto buscamos novas soluções mais críticas que as de ontem e menos que as que virão.
Longe de demonizar Koolhaas ou de santificar Constant ou outro pensador revolucionário, devemos justamente desconstruir os mitos de heroísmo existentes no Espetáculo e buscar as ferramentas para o exercício da subjetividade nas cidades e em toda a arquitetura.Isto certamente passa por criticar a condição supostamente científica da arquitetura e seu papel como mera metafísica alienante à subjetividade na criação do espaço.
Acreditamos que as soluções habitam diversos tempos e escalas diferentes, sendo também ingênuo pensar que há apenas uma ou outra urgência. Dessa maneira, cabe a todos os momentos da construção da vida cotidiana a crítica e sua realização. Talvez a chave que falte para abrirmos estas portas é a crítica ao fazer arquitetura em sua totalidade, sem que se apegue a elementos, formas ou métodos específicos, mas que busque a renovação integral, mesmo que isso signifique sua dissolução enquanto disciplina.
A partir desta afirmação, propomos o estudo das estruturas como uma das ferramentas para libertação do processo de projeto do arquiteto e da própria construção do projeto: definições coletivas, execuções participativas e variações durante a vida das edificações seriam inseridas como germens através da adaptabilidade das estruturas. Sabendo que esta é uma atuação incompleta, busca-se dotar o projeto (como processo) não só da capacidade de evoluir e modificar-se, mas da incerteza de sua concretização em forma determinada. Busca-se colocar uma dúvida essencial dentre os elementos projetados.
Os diferentes tipos estruturais, por sua vez são formas incompletas dessa variação: permitem diversas situações de configuração espacial, mas são, sabidamente, limitados na sua capacidade de libertar, pois já condicionam as variantes possíveis. Além disso, surgem diversas contradições em cada modelo estrutural existente, que permitiram maior ênfases em determinadas variações e facilitarão certas atividades em detrimento a outras.
A prática da arquitetura e do projeto, que nasce da gênese da modernidade no renascimento[14], já é a metafísica que irreconcilia – como verbo ativo – a capacidade do sujeito de determinar o espaço. Ela se fragmenta em ideologias, assume as formas do momento, os métodos mais interessantes encerrados sí próprios e falha em realizar a superação da abstração valor enquanto mediadora da realidade com o sujeito. Agrava este fato ao ser fragmentada em especialidades na sua prática e parte já do princípio científico iluminista da Verdade, com a qual já construiu verdadeiros crimes espaciais.
Necessitamos, portanto, de uma ampla revisão dos postulados mais básicos de nossa atuação em sociedade. Para isso, no entanto, não acreditamos que a inação ou a crítica negativa apenas sejam soluções possíveis. De outra maneira, pensamos na natureza da prática como possibilitadora de brechas e rachaduras processuais nas quais se insiram oportunidades de superação. Ao mesmo tempo, clamamos pela crítica abrangente às ações arquitetônicas na sociedade, especialmente através da construção de bases estruturais e espaciais que em sua gênese intelectual, concretização e utilização permitam aos sujeitos a realização de sua autonomia.
Não é tarefa fácil, mas caminhando perguntamos.

REFERÊNCIAS E NOTAS:
1. Para uma avaliação profunda do tema do valor, sugiro JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria: Para uma Nova Crítica do Valor. Lisboa: Antígona, 2006. Como alternativa online, os grupos Krisis (http://www.krisis.org/) e Exit (http://www.exit-online.org/), ambos em Alemão e, com certo vício de origem, grupo Fim da Linha (http://www.fimdalinha.1br.net).
2. WIGLEY, Mark. New Babylon. The Hyper-architecture of Desire. Uitgeverij: Ed. 010, janeiro de 1998. Citado em http://members.chello.nl/j.seegers1/situationist/constant.html, visitado em 02de setembro de 2008.
3. BUCHLOH, Benjamin. A Conversation with Constant. Nova Iorque, 30 de outubro de 1999 in WIGLEY, Mark (ed.). The activist drawing retracing situationist architectures from Constant's New Babylon to beyond. Nova Iorque: The Drawing Center, 2001, pag. 15-25.
4. DEBORD, Guy. Crítica ao Urbanismo in JAQUES, Paola Bernstein Jaques (org.). Apologia da Deriva: Escritos Situacionistas sobre a Cidade. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2003.
5. VIDLER, Anthony.Diagrams of Utopia. in WIGLEY, Mark (ed.). The activist drawing retracing situationist architectures from Constant's New Babylon to beyond. Nova Iorque: The Drawing Center, 2001, pag. 83-91.
6. Em inglês no original: “not to be found guilty of administering confort and illusion”. ADORNO, Theodor, Aesthetic Theory. Londres: Routledge and Kegan, 1986. Citado em WIGLEY, Mark (ed.). The activist drawing retracing situationist architectures from Constant's New Babylon to beyond. Nova Iorque: The Drawing Center, 2001, pag. 91.
7. Cujo significado não está totalmente presente, mas está por ser descoberto, interpretado, no sentido da definição de Deleuze para diagrama.
8. KOOLHAAS, Rem cit. In CORTES, Juan Antonio in El Croquis n°131/132: OMA AMO 1996-2003. Barcelona: El Croquis Editorial, 2007.
9. Idem.
10.
Sugiro enfaticamente a leitura deste capítulo, Bigness, or the Problem of Large em KOOLHAAS, Rem e MAU, Bruce. S, M, L, XL. Nova Iorque: The Monaceli Press, 1995. Pags. 494 a 517.
11. idem.
12. KOOLHAAS, Rem e MAU, Bruce. S, M, L, XL. Nova Iorque: The Monaceli Press, 1995. Pag. 582.
13. KOOLHAAS, Rem e MAU, Bruce. S, M, L, XL. Nova Iorque: The Monaceli Press, 1995. Pag. 604.
14. Para esta crítica a prática arquitetônica, sugiro ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos Mutirões. Sâo Paulo: Editora 34, 2002.