O momento histórico é inegável: estamos diante do reconhecimento dos serviços do profissional Arquiteto como necessários a construção da habitação popular no Brasil. Diferente do que é feito até aqui, onde um profissional tem de se disponibilizar – por seu risco e conta – a realizar um projeto para então captar recursos, a lei abre o precedente para ações, pesquisa, envolvimento anterior ao envio ao Ministério, repartição, apoiador, etc das propostas de arquitetura. Isso é importantíssimo para qualificar o trabalho! Ao invés de se fazer projetos de improviso, na paixão, ou jogando com os custos de um escritório – e não sei de nenhum que viva exclusivamente de habitação popular – poderá se buscar recursos para o envolvimento mais longo, profundo e principalmente, com tempo adequado a justamente a fase mais delicada de qualquer projeto: aquela da concepção, de ouvir e conhecer o usuário, de inserir qualidade arquitetônica na equação.
As alternativas existentes hoje para esta atuação são várias, mas jogam o arquiteto para o tipo do herói, do suicida, do franciscano ou do oportunista. Sem generalizações, as condições profissionais são essas e dificultam a formação – no interior do sujeito mesmo – do imaginário da habitação popular como possível. É sempre uma epopéia, cada 20 casas são uma maratona e a replicabilidade fica por conta daquelas instituições que conseguem, com um considerável investimento em infra-estrutura e grande capacidade burocrática, resolver a equação do investimento prévio e ganho tardio dos editais públicos, patrocínios privados, etc. Vejo a lei como capaz de gerar uma prática, uma tradição por assim dizer de trabalhar o popular, de poder desenvolver trabalhos mais sincronizados com a população e mesmo de ver a favela como cidade, o popular como cultura, o povão como ser humano e não como outra coisa, distante, que traz uma simpatia da piedade, mas não chega a desmistificar os estereótipos pré-concebidos, vencer a imagem de pobre como estatística.
Falando assim parece que tudo vai ser resolvido, mas claro que não será. Temos o Estatuto da Cidade, mas sua aplicação é misteriosa, temos o Fundo Nacional de Habitação Social, mas ainda a demanda é muito maior que a oferta de recursos e o “recarregamento” do Fundo é ainda exclusivo do Governo Federal (poderia ser de todos mesmo, da sociedade civil, empresariado, população beneficiada, etc). Entretanto, o modo de acesso aos recursos do FNHIS também aponta para uma possível explicação para um outro enrosco que tem surgido nas conversas: como será a operação desses recursos? Quem ganha, sob que critérios, com que prioridade? Como fica a capacidade dos arquitetos de prestar o serviço e o entrosamento com as comunidades - absoluta necessidade nesse campo?
O Clóvis aponta para um rodízio, em que os arqs. cadastrados – desde que preenchessem todas as condições exigidas – realizariam projetos alternadamente. Isso cria alguns problemas, mas é a alternativa mais democrática de distribuição dos serviços. Dessa forma certamente poderia haver um grande número de arquitetos entrando nessa linha de atuação e os profissionais poderiam ser expostos ao tema de maneira ampla, sem favorecimentos e outras maracutaias. Dentre os senãos, está claro, a aleatoriedade desse modo de distribuição – que não permite nem o favorecimento indevido quanto aquele meritório, por qualificação do profissional-, a pulverização das iniciativas entre um sem número de profissionais e provavelmente a uma burocracia pesada para ingresso nessa tal lista como modo de separar o “joio do trigo”, que é como Brasília tende a lidar com essas coisas. Isso até está na lei, quando fala que os arqs. poderão entrar desde que através de i"nstituições privadas sem finalidade lucrativa".
Alternativas a isso, existem a realização de editais, cartas-consulta, etc. que trazem o problema mencionado acima de o trabalho começar efetivamente antes de haver qualquer envolvimento efetivo; outra possibilidade seria a utilização das entidades de classe em concursos de projeto específicos e mesmo outras contratações - tudo menos licitação que pra projeto é ruim demais - e que poderiam complementar o rodízio. Acredito que ele somente dificilmente consiga responder a incrível variedade de demandas.
Um pouco como na formulação dos Planos Municipais de Habitação de Interesse Social (exigência do Estatuto das Cidades pros municípios acessarem o FNHIS), teria que se criar uma base para os projetos através de concursos mais amplos, que articulassem a cidade fomento a pesquisa, investimento em ressenciamento, trabalho de diagnóstico social, ambiental, levantamentos precisos e até em séries históricas dos indicadores mais importantes para esses trabalhos, etc etc.
Se o poder público, mesmo que através de um "Instituto da Habitação Social," de reopente nos moldes do IPPUC de Curitiba, pudesse fornecer as ferramentas necessárias, montar bases de dados robustas o suficientes para que o trabalho técnico conte com precisão e seja criteriosamente avaliado em sua atuação e o poder municipal fomentasse a autonomia efetiva nos Conselhos Administrativos Locais (descentralizando a sua atuação) e nos conselhos municipais temáticos, teríamos uma estrutura forte de distribuição de poder e de investimento técnico.
Para isso, creio que a estrutura montada pelo Orçamento Participativo dos Fóruns Regionais temáticos (Fórum de Habitação, Fórum de Assistência Social, que se agregam nos respectivos Conselhos Municipais) já fornece um apoio, principalmente por já sabermos de muitas de suas falhas que poderíamos corrigir e fortalecer a democracia. Nestes fóruns e conselhos, mais do que nas grandes plenárias, vê-se o envolvimento intenso de grupos sociais e pessoas com um determinado tema por vários anos, o que não permite o casuísmo nem a pulverização das decisões de da "inteligência social" acumulada, mas por outro lado favorece a criação de figuras de poder que teriam que ser articuladas como multiplicadoras e não centralizadoras.
Explorando um pouco mais este conceito, teria-se ainda uma série de sub-necessidades, como a tecnocracia e o corporativismo do empresariado nos Conselhos de Planejamento por exemplo (falo aqui de Porto Alegre, ao menos), a falta de efetividade para as decisões , a falta de informação das entidades populares ao entrar nestes sistema, etc etc etc.
Mais importante para a realização das possibilidades dessa lei é, no entanto, que haja a diferenciação criteriosa das demandas: não pode-se confundir, por exemplo, habitação de baixo custo com habitação de interesse social. Tem de se ter regras claras de participação e de seleção dos beneficiários e dos assistentes técnicos.
Além disso, acredito que esta lei deveria sim beneficiar a civil sociedade organizada, fugindo da aplicação caso-a-caso. Isso é algo a se discutir, mas penso que fortalecer os movimentos sociais aponta para soluções coletivas, e este, acredito, tem de ser uma das ênfases a serem dadas: autonomia dos indivíduos através da coletividade.
2 comentários:
Claro RR! É muitíssimo importante ter esse diálogo, mas muito mais que convencimento se trata, na minha opinião de oferecer a possibilidade de qualificar o ambiente em que se vive.
Neste caso, não buscaríamos somente a erudição das vanguardas, mas um diálogo desta erudição com a realidade de cada local, uma dialética hegeliana da melhor qualidade em que nenhum dos dois elementos oermanenceria intocado.
Sobre o ponto da legalidade e das responsabilidades que isso traz, há algumas tive uma conversa com um defensor público que trata exatamente da regularização fundiária que me fez pensar um bocado. As taxas dos serviços públicos, a morosidade das aprovações e processos burocráticos são notórias no Brasil. Os nossos business men chamam isso de Custo Brazil e estão certíssimos no impacto que isso traz a economia e a sociedade. Nesse contexto, estas taxas pesam mais sobre os que tem menos. Em janeiro o DIEESE lançou um novo relatório que trata disso (veja a Le Monde Diplomatique Brasil de janeiro). Não tenho os números aqui, mas uma proporção de 4 vezes a mais do orçamento dos que ganham até 3 salários em relação aos que ganham mais que 10 é comprometida com taxas e impostos, especialmente os indiretos.
FIca claro então que os impostos no BRasil são um instrumento de arrecadação baseado no mais pobre, no que ganha menos e teria direito a mais isenções, a taxas especiais, etc para equilibrar este comprometimento da renda.
Quando falamos de taxas urbanas (IPTU principalmente, mas também aquelas incidentes no transporte público, água, etc) nota-se que elas são efetivamente motores de deslocamento populacional para as periferias: os bairros formais, regularizados custam infinitamente mais que as ocupações não-regularizadas. Mesmo as taxas de cartório por vezes são excessivas para a regularização de lotes de baixa-renda.
Para contornar isso vejo, no entanto, algumas alternativas que se não estão plenamente adequadas, ao menos nos servem de base para a crítica. A Concessão de Direito Real de Uso e outros instrumentos jurídicos semelhantes pode estimular - mas dificilmente conter - a tendência da comercialização das áreas após sua regularização. O trabalho social efetivamente executado, deve abrir possibilidades de emancipação para além da posse da terra e da habitação, ele é instrumento de desenvolvimento das comunidades - o que implica mudança estrutural nas suas relações sociais e econômicas. Enquanto estas coisas têm efeito, no entanto, deve-se sim buscar a isenção de impostos e taxas, como já previstas na legislação federal e em algumas leis municipais e estaduais.
Taxas cartoriais, taxa social de eletricidade, água e esgoto, isenção de IPTU e outras medidas deveriam ser aplicadas - temporariamente é claro - para facilitar a transição de uma condição para a outra.
Estas medidas, claro, não garantem a autonomia completa do sujeito nem o desenvolvimento integral por sí, mas abrem as possibilidades de como chegar lá um dia.
Sigamos nessa luta, acredito que a arquitetura tem valor em sí mesma e, quando qualificada e fruto de uma gestação saudável, se justifica sem aportes externos, violência ou coação social ou intelectual.
O "Povo", na minha experiência sabe o que é bom da maneira mais direta possível: pela falta do mais essencial. A mentalidade de que pouco para pobre é muito está na academia, na política, na classe média burguesa. Quem nunca teve muito, lógico que vai querer tanto quanto os outros sempre tiveram, e porque não?
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