quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

No rastro de Sérgio Ferro

Começamos, com esta pequena introdução, uma série de resenhas a respeito da obra de Sérgio Ferro, seguindo seu rastro, dívida antiga que estamos pondo em dia somente agora. Nós, jovens arquitetos que acabados de sair de uma das melhores universidades públicas do país, a UFRGS, sentimo-nos em dívida com esta produção teórica depois de tanto estudo de Teoria Crítica e nosso querido grupo de estudos, o Fim da Linha. Isto também é uma re-convocatória a todos que um dia iniciaram o estudo de “O capital” de Karl Marx, com vista noturna para a Redenção, no Van Gogh, boteco podrão da cidade baixa, ao qual sempre voltamos, assiduamente Van-goghianos que somos. Os estudos de Arquitetura e Trabalho Livre só são viáveis por causa destes precedentes, os quais temos de citar invariavelmente neste momento. Cabe lembrar aos leitores que as resenhas dos textos ficarão em ordem cronológica inversa por causa da dinâmica de postagem no blog, mas vale o esforço de ler em ordem. Pois, sem mais delongas, vamos à vaca fria.


Sérgio Ferro, como ele próprio se definiu, é um suicida do métier, ou, como costumamos chamá-lo, o carrasco do fetiche da arquitetura-mercadoria. Crítico da profissão fetichista do Arquiteto e Urbanista e seu instrumento, o desenho separado aliado ao canteiro de obras heterônomo, tentou levar a cabo os limites entre a profissão existente e uma comunidade de produtores livres, fundamentando assim sua obra no trabalho livre. (Sobre o vocabulário utilizado por Ferro e suas conseqüências teóricas versaremos em outra ocasião).


Formado na época da construção de Brasília, jovem arquiteto promissor, pintor, discípulo de Vilanova Artigas e Flávio Motta, participante do “lendário” grupo de estudos d’O Capital de Karl Marx na Rua Maria Antônia (USP) com Roberto Schwarz, Ruy Fausto, Emir Sader, entre outros. Foi, por décadas, acusado de traição, talvez por negar o desenho arquitetônico em prol do trabalho livre no canteiro, refugiando-se na academia e na pintura.


Creio, porém, como escreveu Walter Benjamin, que “ninguém havia percebido de que modo a miséria, não somente a social como a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes, transformavam-se em niilismo revolucionário.” Sérgio Ferro parece ter percebido quando fala do adorno como trabalho livre autodeterminado em Arquitetura. O “adorno é um crime”, sim, mas um crime contra a consciência burguesa. Porém vai bem mais longe do que o niilismo revolucionário do dia antes da festa, tenta realizar a festa.


Nenhum arquiteto havia percebido e demonstrado os lampejos desta “festa” de forma satisfatoriamente contundente antes, fazendo a devida interface da arquitetura com a crítica da economia política e com a filosofia hegeliana, tentando levar a arquitetura ao entendimento de esfera separada da vida social que a filosofia obteve com Hegel, na qual, mais tarde, Marx reconheceu um dos fundamentos do trabalho-mercadoria. Sérgio, acredito, lutou por fazer explodir as diversas “forças atmosféricas” ocultas na constituição da arquitetura como trabalho, como “manufatura serializada”, como técnica ainda residente no passado neolítico sob o falso signo da industrialização. Em suma, por amor à Arquitetura, negou-a como se fundamenta em nossa época, em nome da refundação de uma Arquitetura na qual o trabalho seja livre: é nela que vislumbra o melhor campo estético e técnico para a expressão coletiva deste tipo de “fazer”.


Em seus escritos mais recentes descreve com entusiasmo seu canteiro de obras em Grignam, vilarejo medieval onde mora no interior da França, o que traz à tona que o fato de que a experimentação arquitetônica real pode se efetivar em territórios “liberados socialmente” pelas organizações populares, como o MST, por exemplo, com o qual Ferro estabeleceu laços no Brasil. Afirma, através de experimentos, que a Arquitetura parece guardar o sentido experimental de autonomia produtiva melhor que outros “setores da economia”. Sua condição de “inclusão frágil” nos circuitos de acumulação parte do fim da linha a que chegou a sociedade de nossa época: é a chance para invenção de novas formas de organização social do espaço. Ou, em outras palavras, a arquitetura é o campo no qual ainda pode dar-se a aliança entre a pré-determinação do desenho e o experimentalismo do “trabalho livre” através do pacto entre técnicos e trabalhadores na liberação do potencial revolucionário do fazer em arquitetura. Isto, quando interrogado, deixa como tarefa para as próximas gerações, nós.


Sérgio afirma que: “o outro já germina no seu contrário e pode ser prefigurado sob forma de sua negação determinada”, circunscrevendo a arquitetura a uma dialética negativa e afirma que a critica radical ficará sempre aquém de si mesma se não for acompanhada de uma prática transformadora que pode dar-se através de aproximações sucessivas.


A seguir procederemos, em ordem cronológica, com alguns textos que mostram a trajetória de Sérgio Ferro até seu entendimento da Arquitetura mais contemporâneo. Partiremos dos primeiros textos de 1963, nos quais examina algumas “propostas” feitas com os companheiros Rodrigo Lefevre e Flávio Império até o “corte” de Arquitetura Nova, sob o regime militar, seguido de anotações que dariam origem a seu principal texto: O canteiro e o desenho, de 1976. No segundo momento analisaremos o próprio O canteiro e o desenho, que merece que nos atenhamos um pouco. Logo depois passaremos a seus textos da época de Grenoble, França, seguido da série de textos “recapitulações brasileiras” de seu livro “Arquitetura e Trabalho Livre”. Por último, dois textos de atualização e reafirmação de trajetória: Sobre o canteiro e o desenho e O desenho hoje e seu contra-desenho. Assim tentaremos recapitular a obra de Sérgio Ferro com a pretensão de conseguirmos avançar o debate em direção à liberação do potencial revolucionário na Arquitetura, com o qual já nos comprometemos a muito localmente. Esperamos seja tão construtivo aos leitores quanto tem sido para nós.


OBS: Todas as resenhas que serão apresentadas aqui são do mesmo livro (Sérgio Ferro – Arquitetura e trabalho livre, Cosac Naify, 2006), mas achamos por bem resenhar os textos por separado para recuperar o sentido de espaço de construção de conhecimento que precedeu cada texto. Assim, não faria sentido fazer uma resenha do livro como um todo sem separar por textos de cada época. Por isto optamos por escrevê-las separadamente.

Um comentário:

Alê: o Pereira disse...

ma-ra-vi-lha! ui! colega! heheheh
Muito bom mesmo Flip! Vamo que vamo!!