quarta-feira, 10 de junho de 2009

Ludentis

Desde que comecei a leitura de Homo Ludens de Johan Huizinga eu esperava uma deixa pra introduzi-lo nesse diálogo que temos no blog. Ao invés de contrapor ou ir mais além para dentro da academia, vou dar um passo atrás, colocar fragmentos editados pouco criteriosamente desse texto que de maneira muito tranquilo nos leva num passeio pela civilização humana construindo as bases da cultura e do nosso comportamente e explicitando os elementos lúdicos presentes neles.

Sem mais, vamos a alguns fragmentos:

HUIZINGA, Johan [tradução João Paulo Monteiro]. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007.

Prefácio

Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto a razão do sécullo XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber. Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta, visto que pode servir para designar grande número de animais. Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar na nossa nomenclatura.

[...]

Assim, o jogo é aqui tomada como fenômeno cultural e não biológico, e é estudado em uma perspectiva histórica, não propriamente científica em sentido restrito. [...] Se eu quisesse resumir meus argumentos sob a forma de teses, uma destas seria que a antropologia e as ciências a ela ligadas têm, até hoje, prestado muito pouca atenção ao conceito de jogo e à importância fundamental do fator lúdico para a civilização.

[...]

1. Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno Cultural

O jogo é mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É nos porssível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à idéia de jogo.

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Desde já encontramos aqui um aspecto muito importante: mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassao os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa " em jogo" que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando de " instinto" ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou "vontade" seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência.

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Se alguma delas [explicações sobre os porquês do jogo] fosse relamente decisiva, ou eliminaria as demais ou englobaria todas em uma unidade maior. A grande maioria, contudo, preocupa-se apenas superficialmente em saber o que o jogo é em sí mesmo e o que ele significa para os jogadores. Abordam diretamente o jogo utilizando-se dos métodos quantitativos das ciências experimentais, sem antes disso rpestarem atenção a seu caráter profundamente estético.[...] E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo. O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energoa excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, etc, soba a forma de exercícios e reações puramente mecânicos. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo.

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Este último elemento, o divertimento do jogo, resiste a toda análise e interpretação lógicas. [...] E é ele precisamente que define a essência do jogo. Encontramo-nos aqui perante uma categoria absolutamente primária da vida, que qualquer um é capaz de identificar desde o próprio nível animal. É legítimo considerar o jogo uma "totalidade", no moderno sentido da palavra [...].

Como a realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida humana é impossível que tenha seu fundamento em qualquer elemento racional, pois nesse caso, limitar-se-ia à humanidade. A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a qualquer concepção do universo. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua lingua não possua um termo geral capaz de defini-lo. A existência do jogo é inegável. É possível negar, se se quiser, quase todas as abstraçõe: a justiça, a beleza, a verdade, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo.

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As grandesa tividades arquetípicas da sociedade humana são desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com esta designação elevá-las ao domínio do espírito. Ma criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda a metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homen cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.

Outro exemplo é o mito, que é também uma transformação ou uma "imaginação" do mundo exterior, mas implica em um processo mais elaborado e complexo do que ocorre no caso das palavras isoladas. O homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos fenômenos atribuindo a este um fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito de fantasia que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do cultom verificaremos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra.


Ora, é no mito e no culto que tem origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas elas tem suas raízes no solo primevo do jogo.

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Chegamos assim à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida "corrente" nem vida " real". Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida "real" para uma esfera temporária de atividade com orientação própria.[...] Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância, ele se nos apresenta: ocmo um intervalo em nossa vida quotidiana. [...] Nessa medida, situa-se numa esfera superior aos processos estritamente biológicos de alimentação, reprodução e autoconservação.

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O jogo distingue-se da vida "comum" tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características principais: o isolamento, a limitação. É "jogado até o fim" dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um caminho e sentido próprios.

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Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é desordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. É talvez devido a esta afinidade profunda entre ordem e o jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga medida ligado ao domínio da estética. Há nele uma tendência para ser belo. [...]

O elemento de tensão [...] desempenha um papel especialmente importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo ao desenlace, o jogador quer que alguma coisa "vá" ou "saia", pretende "ganhar" à custa de seu próprio esforço.[...] Embora o jogo enquanto tal esteja para além do domínio do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habiliade e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua "lealdade". Por que, apesar de seu ardente desejo e ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo.

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Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como "não-séria" e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.

[...]

12. Elemento Lúdico na Cultura Contemporânea

[...]

"Ele considerava jogos infantis todas as opiniões humanas" diz a tradição grega mais tardia acerca de Heráclito. Em oposição a esta frase lapidar, citemos agora de maneira mais extensa as profundas palavras de Platão [...] "Embora as coisas humanas não se caracterizem por uma grande seriedade, mesmo assim é necessário ser sério, ainda que issonão contribua para nossa felicidade... É preciso tratar com seriedade aquilo que é sério enada mais. Só Deus é digno de suprema seriedade, e o homem nçao passa de um joguete de Deus, e é esse o melhor aspecto de sua natureza. Portanto, todo homem e mulher devem viver a vida de acordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suas inclinações atuais... Pois eles consideram a guerra uma coisa séria, embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos desse nome, justamente as coisas que nós consideramos as mais sérias. Portanto, todos devem esforçar-se ao máximo por viver em paz. Qual é, então, a maneira mais certa de viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando em combate." Assim "os homens viverão de acordo com a natureza, pois sob muitos aspectos eles são como fantoches e só possuem uma pequena parte da verdade."

[...]

Sempre que nos sentirmos presos de vertigem, perante a secular interrogação sobre a diferença entre o que é sério e o que é jogo, mais uma vez encontraremos no domínio da ética o, ponto de apoio que a lógica é incapaz de oferecer-nos. Conforme dissemos desde o início, o jogo está fora desse domínio da moral, não é em sí mesmo nam bom nem mau.Mas sempre que tivermos de decidir se qualquer ação a que somos levados por nossa vontade é um dever que nos é exigido ou é lícito como jogo, nossa consciência moral prontamente nos dará a resposta. Sempre que nossa decisão de agir depende da verdade ou da justiça, da compaixão ou da clemência, o problema deixa de ter sentido. Basta uma gota de piedade para colocar nossos atos acima das distinções intelectuais. Em toda a consciência moral baseada no reconhecimento da justiça e da graça, o dilema do jogo e da seriedade, até aqui insolúvel, deixará de poder ser formulado.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Paradoxo na acadimia

Li, ha poucos instantes, uma coisa que me fez parar:
...a crítica cerrada a essa crença exacerbada na razão e na ciência, característica da modernidade, viria a constituir um dos principais eixos inspiradores do que se convencionou chamar de "condição pós-moderna"
(Harvey, 1992).

Em: Eva Barbosa Samios. Conhecendo o conhecimento: questões lógicas e teóricas na crítica da ciência e da razão.

Crença na razão (e na ciência)??? Na minha concepção capenga isso parece um paradoxo. Só o véio Adorno nos socorre neste momento. A miopia do paradoxo não o deixa enxergar a dialética.

"No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber . ...Contudo, a credulidade, a aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com o saber , a timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguiça nas investigações pessoais, o fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e coisas semelhantes impediram um casamento feliz do entendimento humano com a natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso, a conceitos vãos e experimentos erráticos; o fruto e a posteridade de tão gloriosa união pode-se facilmente imaginar. ..Portanto, a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida. Nele muitas coisas estão guardadas que os reis, com todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre as quais sua vontade não impera, das quais seus espias e informantes nenhuma notícia trazem, e que provêm de países que seus navegantes e descobridores não podem alcançar".

Dialética do Esclarecimento, T. Adorno e Max Horkheimer.

Pois é, maluco, eu tento expandir os limites e sair da zona de conforto das tiuria crítica, mas que q eu vo fazer se os véio é que dão a moral...
heheheheh...

Pilha acadêmica, tá ligado...

Entrei nas pilha acadêmica do espírito científico e obstáculo primeiro, tá ligado mano... mando um Bachelard aí pro'cês lê. Lê aí mano! Lê mano!

"O padre Louis Castel dizia com acerto: ...Um homem que raciocina, que faz uma demonstração, trata-me como um homem; raciocino junto com ele; deixa-me liberdade de julgar e, se me força, é através da minha própria razão. Mas aquele que grita "é um fato" considera-me como um escravo.

Contra a adesão ao "fato" primitivo, a psicanálise do conhecimento objetivo é especialmente difícil. Parece que nenhuma experiência nova, nenhuma crítica pode dissolver certas afirmações primeiras. No máximo, as experiências primeiras podem ser retificadas e explicitadas por novas experiências. Como se a observação primeira pudesse fornecer algo além de uma oportunidade de pesquisa!"

Gaston Bachelard - A formação do espírito científico.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Raytracing 56%

Enquanto as tarefas alienadas do cotidiano da prática espetacular da arquitetura continuam seu curso, nos permitimos uma perambulação mais teorizante no maciço, porém leve "Uma Nova Agenda para a Arquitetura" (ou aqui no Google Books). Organizado por Kate NESBITT e contando com uma seleção dos principais artigos do após-o-moderno, o livro serve como uma ampla e breve passagem pelos escritos sobre arquitetura da segunda metade do séc. XX e início do XXI. Resolvi selecionar apenas um, que transcrevo aqui na esperança de, de certo modo, fazer dialogar os dois aspectos principais desse blog: uma crítica materialista-dialógica da realidade e o metier da arquitetura, urbanismo e planejamento.


AGREST, Diana e GANDELSONAS, Mario:

Semiótica e Arquitetura: Consumo ideológico ou trabalho teórico
(parte um de dois)

De maneira geral, as teorias da arquitetura e do design tendem a perpetuar a estrutura básica da sociedade ocidental e ao mesmo tempo manter o design como uma operação legítima dentro da ordem estabelecida. Os autores questionam esse papel adaptativo da teoria da arquitetura analisando a incorporação da semiótica como um "bloqueio teórico". Afirmam que a teoria somente poderá ser considerada como uma produção de conhecimento se houver uma completa transformação de sua base ideológica.

Nos últimos vinte anos, houve uma extraordinária intensificação da produção de "teoria" da arquitetura e do design, que destacam o papel especial da teoria arquitetônica que se desenvolveu continuadamente ao longo de cinco séculos.A Função das "teorias", hoje como antes, tem sido de adaptar a arquitetura às necessidades das formações sociais ocidentais(1), servindo de elo de ligação entre a estrutura global da sociedade e sua arquitetura. (2) Dessa maneira, a arquitetura tem se modificado para responder à mudança das demandas sociais, incorporando-se à sociedade mediante operações "teóricas". As mudanças correspondentes introduzidas pela "teoria" na prática arquitetônica atuam no sentido de perpetuar a estrutura básica da sociedade e, ao mesmo tempo, de manter a própria arquitetura como sua instituição dentro das formações sociais ocidentais. (3)

Em um artigo anterior(4), definimos o processo de produção do conhecimento como um projeto teórico que não visa nem à adaptação da arquitetura às "necessidades" das formações sociais nem à manutenção da instituição como a conhecemos. Nesse ponto específico, já nos referimos à teoria em sentido estrito como oposta à "teoria" adaptativa, que chamamos de ideologia.

A ideologia pode ser definida como um conjunto de represwentações e crenças – religiosas, morais, políticas, estéticas – a respeito da natureza, da sociedade, da vida e das atividades dos homens sobre a natureza e a sociedade. A ideologia tem a função social de manter a estrutura global da sociedade induzindo os indivíduos a aceitar em suas consciências o lugar e o papel que essa estrutura lhes designa. Ao mesmo tempo, a ideologia atua como um obstáculo ao verdadeiro conhecimento, impedindo a constituição da teoria e seu desenvolvimento.

A função da ideologia não é produzir conhecimento, mas opor-lhe obstáculos. De certo modo, a ideologia alude à realidade, mas somente oferece dela uma ilusão(5). A soma de todo o "conhecimento" arquitetônico ocidental, das insituições do senso comum às complexas "teorias" e histórias da arquitetura, deve ser vista mais como ideologia do que como teoria. Essa ideologia já proclamou satisfazer as necessidades práticas da sociedade por meio da organização e controle do ambiente construído. Para nós, no entanto, a função subjacente dessa ideologia é mais pragmática, a de simultaneamente satisfazer e preservar a estrutura global da sociedade nas formações sociais ocidentais. Ela contribui para a perpetuação do modo capitalista de produção, bem como para a prática arquitetônica como parte dele. Assim, mesmo que a ideologia proporcione um conhecimento do mundo, é um conhecimento determinado, limitado, deurpado por essa função predominante.

Pensamos que há necessidade de uma teoria, mas que ela seja claramente diferenciada da "teoria" adaptativa ou do que estamos chamendo aqui de ideologia arquitetônica. Nesses termos, a teoria da arquitetura é o processo de produção de conhecimento que toma por base uma relação dialética com a ideologia arquitetetônica; ou seja, a teoria se desenvolve a partir da ideologia e ao mesmo tempo se coloca em posição radical a ela. É essa relação dialética que distingue e separa a teoria de ideologia.

Em oposição à ideologia, propomos uma teoria da arquitetura, necessariamente fora da ideologia. Essa teoria descreve e explica as relações entre a sociedade e os ambientes construídos de diferentes culturas e modos de produção(6). O trabalho teórico não tem como matéria prima nenhuma coisa concreta ou real, mas crenças, noções e conceitos sobre essas coisas. As noções são transormadas por meio da aplicação de determinadas ferramentas conceituais, e o produto é o conhecimento das coisas(7). A ideologia arquitetônica, como parte integrante de uma cultura e de uma sociedade burguesas, supre parte da matéria-prima sobre a qual devem atuar as ferramentas conceituais.

As relações entre teoria e ideologia podem ser caracterizadas como uma luta permanente, na qual a ideologia defende um tipo de conhecimento cuja finalidade principal é mais a conservação dos sistemas sociais existentes e de suas instituições do que a explicação da realidade. A história contém muitos exemplos dessa relação. A Igreja [católica] apoiou durante séculos a teoria ptolemaica do universo, que corroborava os textos bíblicos, contra outros modelos que poderiam explicar com mais exatidão a mesma realidade. A teoria coperniciana, ao contrário, foi o resultado de uma transformação conceitual dentro da ideologia. Copérnico destruiu literalmente o sistema geocêntrico de Ptolomeu e desprendeu sua teoria desta ideologia "projetando a terra nos céus"(8). A condenação de Copérnico pela Igreja e a tentativa de cancelar um novo conceito do universo no qual o homem estava mais no centro do mundo e onde o cosmos não se organizava mais em torno dele, mostr um outro aspecto dessa luta. A ideologia teórica, que originalmente se opôs a concepção cosmológica coperniciana, acabou por absorvê-la para reacomodar a estrutura teórica. Cabe distinguir duas etapas nessa relação dialética entre teoria e ideologia: a primeira é a de transformação produtiva, quando a ideologia é inicialmente transformada para prover uma base teórica ; a segunda é a da reprodução metodológica, quando a teoria é elaborada como entidade separada da ideologia. Os estudos de Copérnico correspondem à primeira etapa, em que o trabalho teórico consiste essencialmente na subversão de uma determinada ideologia.

A arquitetura ainda está à espera de um Copérnico para iniciar a primeira etapa da explicação teórica. A verdade é que apenas recentemente começamos a nos dar conta da necessidade de analisar as relações entre teoria e ideologia.

Diversas ideologias arquitetônicas têm aparecido de modo mais ou menos sistemático, como evidencia o uso ambíguo da denominação " teoria". Essa ambiguidade tem se acentuado recentemente em teses pseudoteóricas, que usam modelos provenientes de diferentes campos do conhecimento, como a matemática, a lógica, o behaviorismo ou a filosofia. Quando aplicados à arquitetura, esses modelos introduzem uma ordem superficial, mas deixam intacta a estrutura ideológica subjacente. A invtrodução de modelos tirados d outros campos do conhecimento deve ser vista como consumo ideológico e como um modismo temporário no plano da técnica (9). Mas o consumo de teorias que podem ser pensadas em sí como instrumento para o desenvolvimento da teoria sobre a arquitetura atua como uma forma especial de obstáculo ideológico, que denominamos bloqueio teórico.

Muitas teorias que se apresentam como teorias numa acepção estrita são, na realidade, justo o oposto. Elas funcionam como obstáculos à produção teórica. Mas muitas das " teorias semióticas da arquitetura" produzidas recentemente constribuem tão-somente para o consumo de uma teoria da semiótica, a qual, a nosso ver, poderia propiciar uma série de instrumentos úteis para a produção de conhecimento sobre a arquitetura. Essas teorias são a essência de um bloqueio teórico.


[FIM DA PARTE 1]

Notas:

1. Formação social (formatio sociale) é um conceito marxista que designa a " sociedade". " A formação social é a totalidade complexa concreta que compreende as práticas econômica, política e ideológica, num lugar e num estágio determinados de desenvolvimento." Louis Althusser, For Marx. Nova Iorque: First Vintage Books, 1970, p, 251.
2. Há outras funções das teorias da arquitetura e do design que não mencionamos neste artigo, isto é, a teoria cuja função é estabelecer determinado ordenamento das operações de projeto dentro da prática arquitetônica.
3. As transformações ocorridas na sociedade introduzem reformas que permitem a sobrevivência do sistema vigente. Contudo, essas mudanças nunca são verdadeiras - pois as relações estruturais permanecem intocadas - , mas meras transformações daquele sistema. Por exemplo, o desenvolvimento do modo de produção capitalista em diferentes estágios - mercantilismo, capitalismo industrial, imperialismo, etc - baseou-se numa série de transformações realizadas em diferentes domínios, mas que não modificaram de forma alguma a estrutura de classes.
4. Diana Agrest e Mario Gandelsonas, "arquitectura/Arquitectura", Materia, Cuadernos de Trabajo. Buenos Aires, 1972.
5. Para sermos mais exatos, deveríamos falar em ideologias no plural, ainda que, neste artigo, estehamos tratando de uma ideologia específica, a ideologia burguesa.
6. Esta é uma definição parcial do objeto específico deste artigo: a relação entre teoria e ideologia arquitetônica. Esse caráter parcial decorre do fato de que o importante problema teórico da relação entre a prática arquitetônica e o inconsciente (Freud) não foi considerado neste artigo.
7. Procuramos seguir aqui o capítulo "Metodologia", em Karl Marx, Introdução a Crítica da Economia Política, recentemente analisado por Althusser, em Pour Marx. Essas duas obras são uma base fundamental para qualquer abordagem materialista dialética da teoria em contraste com as formas de concepção idealista da teoria. Ver a classificação althusseriana da teoria idealista como "empirismo", e "formalismo". Usamos este termo, no entanto, com o objetivo de contrastá-lo com o que se deve considerar hoje simplesmente como concepção ocidental da teoria e para enfatizar seu caráter provisório como etapa atual no processo de desenvolvimento de uma teoria mais geral das ideologias.
8. Alexander Koyre, La Révolution Astronomique. Paris: Hermann, 1961, p. 16.
9. Diana Agrest, Epistemological Remarks on Urban Planning Models, palestra no IAUS, Nova Iorque, 1972.