terça-feira, 1 de dezembro de 2009

MCMV = Mercatil Interéssis

Tirando um tempo dos atabalhoamentos cotidianos, li o artigo de julho do Pedro Fiori Arantes e da Mariana Fix, arquitetos e urbanistas de São Paulo, sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida. De maneira impressionante - pela clareza e didatismo - eles dissecam alguns aspectos cruciais do Programa em relação as suas capacidades de impacto na sociedade, ao destino dos seus benefícios diretos e indiretos e a sua veracidade enquanto política pública de inclusão social.
Sem parecer sensacionalistas e menos ainda ideológico-partidários - ao contrário desnudando as ideologias "embutidas" nos discursos aparentemente "neutros" - eles avaliam, em 11 pontos o Programa, chegando a visões muito claras.
Sem me alongar mais, repasso o texto do Correio da Cidadania, que orinalmente publicou o texto na sua seção de "Especiais".
Aqui o link para o artigo completo (recomendo essa versão) e abaixo, o texto copiado sem os comentários que gerou no site do Correio da Cidadania.

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Pacote Habitacional de Lula é a privatização da política urbana

O pacote habitacional "Minha casa, minha vida", lançado em abril de 2009, com a meta de construção de um milhão de moradias, tem sido apresentado como uma das principais ações do governo Lula em reação à crise econômica internacional – ao estimular a criação de empregos e de investimentos no setor da construção –, e também como uma política social em grande escala. O volume de subsídios que mobiliza é de 34 bilhões de reais (o equivalente a três anos de Bolsa-Família), para atender a população de 0 a 10 salários mínimos de rendimento familiar. Por isso, o governo Lula tem destacado que o investimento, apesar de focado na geração de empregos e no efeito econômico anticíclico, tem um perfil distributivista, ao contrário do que provavelmente faria a oposição – um conjunto de obras diretamente de interesse do capital.

O objetivo declarado do governo federal é dirigir o setor imobiliário para atender à demanda habitacional de baixa renda, que o mercado por si só não alcança. Ou seja, é fazer o mercado habitacional, restrito no Brasil a uma parcela minoritária da população, finalmente incorporar setores que até então não tiveram como adquirir a mercadoria moradia de modo regular e formal. Se as "classes C e D" foram descobertas como "mercado" por quase todas as empresas nos últimos anos, ainda havia limites, numa sociedade extremamente desigual e de baixos salários, para a expansão no acesso a mercadorias caras e complexas, como a moradia e a terra urbanizada. Com o pacote habitacional e o novo padrão de financiamento que ele pretende instaurar, esses limites pretendem ser, se não superados, alargados por meio do apoio decisivo dos fundos públicos e semi-públicos, de modo que a imensa demanda por moradia comece a ser regularmente atendida.

Para os mais pobres, o subsídio é alto (entre 60% a 90% do valor do imóvel) e o despejo, no caso de inadimplência, é improvável. Para os demais, que entram em financiamentos convencionais, mas também subsidiados, o governo estabeleceu um "fundo garantidor" para cobrir prestações em atraso e preservar o sistema. O pacote é generoso com todos os que conseguirem nele entrar. Para as construtoras, a promessa é que "haverá para todos, grandes e pequenos", como se manifestou um empresário da construção recentemente. Entretanto, para os sem-teto, o atendimento previsto é para apenas 14% da demanda habitacional reprimida, do nosso déficit habitacional de ao menos 7,2 milhões de casas.

A seguir pretendemos apresentar uma discussão preliminar do pacote, a partir das informações, medidas e instruções normativas que foram divulgadas até o momento (julho de 2009), por meio de algumas questões que nos auxiliam a compreendê-lo.

1) Qual é o modelo de provisão habitacional que o pacote favorece?

97% do subsídio público disponibilizado pelo pacote habitacional, com recursos da União e do FGTS, são destinados à oferta e produção direta por construtoras privadas, e apenas 3% a entidades sem fins lucrativos, cooperativas e movimentos sociais, para produção de habitação urbana e rural por autogestão. O pacote não contempla a promoção estatal (projetos e licitações comandados por órgãos públicos), que deve seguir pleiteando recursos através das linhas existentes, com fundos menores, muito mais concorridos, e restrições de modalidades de acesso e de nível de endividamento.

Esse perfil de investimento já indica qual o modelo claramente dominante e a aposta na iniciativa privada como agente motora do processo. A justificativa é a dificuldade do poder público (sobretudo municipal) na aplicação de recursos induzindo o governo federal a optar por uma produção diretamente de mercado. Desse modo, ao invés de atuar para reverter o quadro de entraves à gestão pública, fortalecendo-a, assume a premissa de que a eficiência está mesmo do lado das empresas privadas.

A produção por construtoras, para a faixa de mais baixa renda, entre 0 e 3 salários mínimos por família (até 1.394 reais), é por oferta privada ao poder público, com valores entre 41 e 52 mil reais por unidade, dependendo do tipo de município e da modalidade de provisão (casas ou apartamentos). Uma produção "por oferta" significa que a construtora define o terreno e o projeto, aprova junto aos órgãos competentes e vende integralmente o que produzir para a Caixa Econômica Federal, sem gastos de incorporação imobiliária e comercialização, sem risco de inadimplência dos compradores ou vacância das unidades. O acesso às unidades é definido a partir de listas cadastradas pelas prefeituras. Nas faixas imediatamente superiores, de 3 a 10 salários por família, ou de "mercado popular", são previstas 600 mil unidades. Nesse caso a comercialização é feita diretamente pelas empresas e o interessado vai diretamente aos estandes de vendas ou aos cada vez mais concorridos "feirões da casa própria" patrocinados pela Caixa.

2) O pacote irá mesmo beneficiar as famílias que mais precisam?

A história do subsídio habitacional no Brasil é conhecida pela constante captura da subvenção pelas classes médias e agentes privados, ao invés de atender, na escala necessária, os trabalhadores que mais precisam. Embora essa tendência deva novamente prevalecer, há que se considerar o interesse político e eleitoral do governo em atingir a base da pirâmide.

De um lado, o governo quer que o subsídio favoreça o deslocamento do mercado imobiliário para faixas de baixa renda, onde obtém maiores dividendos políticos, enquanto o mercado quer aproveitar o pacote para subsidiar a produção para classe média e média-baixa, onde obtém maiores ganhos econômicos. Em ambos os casos, o mercado depende do governo para expandir a oferta e não do sistema privado de crédito, como nos países centrais. Ou seja, é um mercado que não é plenamente capitalista e acaba alimentado pelos fundos públicos. De outro lado, o governo depende do mercado para implementar uma política social, pois o sucateamento dos órgãos públicos, das secretarias de habitação e das Cohabs, além de questões ideológicas, impedem uma ação dirigida predominantemente pelo Estado.

O perfil de atendimento previsto pelo pacote revela, porém, o enorme poder do setor imobiliário em dirigir os recursos para a faixa que mais lhe interessa. O déficit habitacional urbano de famílias entre 3 e 10 salários mínimos corresponde a apenas 15,2% do total, mas receberá 60% das unidades e 53% do subsídio público. Essa faixa poderá ser atendida em 70% do seu déficit, satisfazendo o mercado imobiliário, que a considera mais lucrativa. Enquanto isso, 82,5% do déficit habitacional urbano concentra-se abaixo dos 3 salários mínimos, mas receberá apenas 35% das unidades do pacote, o que corresponde a 8% do total do déficit para esta faixa. No caso do déficit rural, a porcentagem é pífia, 3% do total. Tais dados evidenciam que o atendimento aos que mais necessitam se restringirá, sobretudo, ao marketing e à mobilização do imaginário popular.

Descolamento entre atendimento do pacote e perfil do déficit

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Fonte: elaboração própria a partir de dados da Fundação João Pinheiro para o déficit
calculado com base no IBGE para o ano 2000.

A faixa de 3 a 10 SM é a maior beneficiada, graças ao interesse do mercado

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Fonte: elaboração própria a partir de dados da Fundação João Pinheiro para
o déficit calculado com base no IBGE para o ano 2000.

3) Como o pacote mobiliza a ideologia da "casa própria"?

O pacote habitacional e sua imensa operação de marketing retomam a "ideologia da casa própria" que foi estrategicamente difundida no Brasil durante o regime militar, como compensação em relação à perda de direitos políticos e ao arrocho salarial. A promessa de casa própria, como marco da chamada "integração" social, já se viu, pode ser utilizada como substitutiva da emergência histórica do trabalhador como sujeito que controla a mudança social (seu sentido e alcance). Seja por coerção, cooptação ou consentimento, a promessa da casa própria pode promover um contexto de apaziguamento das lutas sociais e de conformismo em relação às estruturas do sistema.

Evidentemente que não se trata apenas de um fenômeno ideológico. A casa própria é percebida e vivida pelas camadas populares como bastião da sobrevivência familiar, ainda mais em tempos de crise e de instabilidade crescente no mundo do trabalho. Ela cumpre um papel de amortecimento diante da incompletude dos sistemas de proteção social e da ausência de uma industrialização com pleno emprego. Para os políticos, esta operação de marketing se faz necessária para amplificar os dividendos eleitorais, pois grande parte do pacote ocorre no plano do imaginário, dada a disparidade entre a promessa e o atendimento previsto. E, para o capital imobiliário, ela também é um excelente negócio.

4) O pacote favorece a desmercantilização da habitação, enquanto política de bem-estar social?

O volume de recursos públicos ou do FGTS destinados a subsidiar a operação dá a entender que se trata de uma imensa operação de distribuição de renda e de "salário indireto". A taxa de subsídio é alta para a faixa de 0 a 3 salários, que deve pagar 10% de seu rendimento ou o mínimo de 50 reais por mês, com juros zero, por um período de 10 anos. Mesmo que o desenho da transferência de renda seja positivo, é preciso compreender quais as intermediações sobre o recurso e seu resultado qualitativo, pois não se trata de uma transferência direta, como no caso do cartão Bolsa-Família.

Enquanto o trabalhador recebe uma casa com apenas 32 m2 de área útil (modelo proposto pela Caixa), provavelmente nas periferias extremas, a empreiteira pode receber por essa casa-mercadoria até 48 mil reais, ou 1,4 mil reais por m2.

Tal como é desenhado pelo pacote, o subsídio, neste caso, tem a família sem-teto como "álibi social" para que o Estado favoreça, na partição da riqueza social, uma fração do capital, a do circuito imobiliário (construtoras, incorporadoras e proprietários de terra). Na verdade, o subsídio está sendo dirigido ao setor imobiliário tendo como justificativa a "chancela social" da habitação popular.

5) O pacote colabora para a qualificação arquitetônica e a sustentabilidade ambiental dos projetos de habitação popular?

Mesmo não superando a condição da forma-mercadoria, o pacote poderia pretender qualificar minimamente os projetos de habitação popular, inclusive obtendo os dividendos eleitorais de casas mais funcionais, bonitas e sustentáveis. Para tanto deveria mobilizar agremiações profissionais e universidades, avaliar referências internacionais e nacionais, favorecer critérios de sustentabilidade ambiental etc. Do ponto de vista do processo produtivo, poderia favorecer iniciativas sérias de pré-fabricação, já aproveitando o conhecimento acumulado, por exemplo, pelas fábricas públicas de edificações (como as coordenadas por João Figueiras Lima).

Mas não há preocupação com a qualidade do produto e seu impacto ambiental, a não ser a que é posta pelo próprio capital da construção e suas pífias certificações de qualidade, que garantem na verdade sua viabilidade como mercadoria, ou seja, a ratificação da prevalência do valor de troca sobre o valor de uso. As condições materiais e simbólicas de conjuntos habitacionais desse tipo, como se sabe, promovem a segregação dos trabalhadores e a falta de qualidades mínimas de vida urbana e serviços públicos. Quem mora ou visita conjuntos habitacionais assim reconhece neles o mesmo arquétipo dos presídios.

6) O pacote favorece a gestão democrática das cidades e o fortalecimento das administrações municipais?

Os projetos não são formulados a partir do poder público ou da demanda organizada, não são licitados, não são definidos como parte da estratégia municipal de desenvolvimento urbano e podem inclusive contrariá-la. São estritamente concebidos como mercadorias, rentáveis a seus proponentes. Os municípios não têm um papel ativo no processo a não ser na exigência de que se cumpra a legislação local, quando muito. Não são fortalecidas as estruturas municipais de gestão, projetos e controle do uso do solo.

É provável ainda que os municípios sejam pressionados a alterar a legislação de uso do solo, os coeficientes de aproveitamento e mesmo o perímetro urbano, para viabilizar economicamente os projetos. As companhias habitacionais e secretarias de habitação devem estar preparadas para se tornar um balcão de "aprovações" e para doar terrenos à iniciativa privada.

7) O pacote favorece a reforma urbana e a função social da propriedade?

Na ânsia de poder viabilizar o maior número de empreendimentos, o poder local ficará refém de uma forma predatória e fragmentada de expansão da cidade. O "nó da terra" permanecerá intocado e seu acesso se dará pela compra de terrenos por valores de mercado (ou ainda acima destes). O modelo de provisão mercantil e desregulada da moradia irá sempre procurar a maximização dos ganhos por meio de operações especulativas.

Não há nada no pacote, por exemplo, que estimule a ocupação de imóveis construídos vagos (que totalizam 6 milhões de unidades, ou 83% do déficit), colaborando assim para o cumprimento da função social da propriedade. A existência desse imenso estoque de edificações vazias é mais um peso para toda a sociedade, pois são em sua maioria unidades habitacionais providas de infra-estrutura urbana completa, muitas delas inadimplentes em relação a impostos.

Não há dúvida que o pacote irá estimular o crescimento do preço da terra, favorecendo ainda mais a especulação imobiliária articulada à segregação espacial e à captura privada de investimentos públicos. Assim, a política habitacional de interesse social se tornará cada vez mais inviável, a menos que o governo siga dirigindo subsídios aos proprietários de terra.

8) Por que o pacote desconsidera os avanços institucionais recentes em política urbana no Brasil?

O pacote foi elaborado pela Casa Civil e pelo Ministério da Fazenda, em diálogo direto com os setores imobiliários e da construção, desconsiderando diversos avanços institucionais na área de desenvolvimento urbano bem como a interlocução com o restante da sociedade civil. O Ministério das Cidades (mesmo entregue em 2005 ao PP) foi posto de lado na concepção do programa, o Plano Nacional de Habitação foi ignorado em sua quase totalidade, o Estatuto da Cidade não foi tomado como um elemento definidor dos investimentos, o Conselho das Cidades sequer foi consultado, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), bem como seu Conselho, foram dispensados. O decreto do pacote ainda define um comitê de acompanhamento formado exclusivamente por integrantes do governo.

9) O pacote habitacional é uma política anticíclica acertada?

Ele é anunciado como uma política anticíclica com objetivos sociais – que, em última instância, o justificam e parece desobrigar seus propositores de demonstrar seu impacto nas cadeias produtivas. Mesmo que a indústria da construção tenha um efeito multiplicador positivo, no caso da habitação popular, que se reduz praticamente à base dos produtos (cimento, tijolo, areia, madeira etc), o poder multiplicador é muito menor.

Do ponto de vista da quantidade dos empregos gerados, não há dúvida de que, pela sua baixa composição orgânica (poucas máquinas), a construção civil é uma empregadora maciça. Mas qual a qualidade deste trabalho? O pacote não faz nenhuma exigência em relação às condições de trabalho nos canteiros (sabidamente precárias e cheias de riscos) e não há medidas para fortalecer a legislação e órgãos de fiscalização. A negociação entre governo e construtoras para definir o menor custo viável por unidade deverá redundar, ainda por cima, em um aumento da exploração dos trabalhadores.

O tempo lento dos investimentos habitacionais e a preocupação com a rentabilidade privada descaracterizam o pacote como política anticíclica keynesiana. Uma opção teria sido a criação de frentes de trabalho diretamente mobilizadas pelos governos, com gastos dissociados do rentismo imobiliário. Além disso, é preciso lembrar que o governo mantém o superávit primário, mesmo que em menor proporção, quando a base da política anticíclica é a criação de déficit público.

Se considerarmos que o pacote não é, na verdade, a melhor política anticíclica, o "emergencial" e o "quantitativo" devem deixar de ser razões absolutas para ser condicionados por determinações mais substantivas, de modo a que prevaleçam critérios urbanos, sociais e ambientais mais adequados para se avaliar e implementar uma política habitacional.

10) O pacote fortalece os movimentos populares?

Os movimentos sociais urbanos e seus apoiadores lutam há décadas por subsídios massivos para a habitação popular. A conquista do subsídio em grande escala, como vemos, pode ser capitaneada pelo capital da construção ao invés de fortalecer as organizações populares. Da perspectiva dos trabalhadores, a luta por quantidades (de recursos, de unidades habitacionais, de famílias atendidas) não pode estar desvinculada das qualidades – isto é, das relações de produção, da concepção dos projetos, das condições de trabalho nos canteiros, do valor de uso das edificações, da forma urbana resultante, enfim, das qualidades de todo o processo social envolvido.

Os recursos disponibilizados para a política gerida por entidades sem fins lucrativos, isto é, pelas organizações populares, correspondem a apenas 3% do total do subsídio e é restrita à faixa de 0 a 3 salários mínimos, justamente a que menos interessa às empresas. O recurso limitado também pode promover uma disputa entre os movimentos, que passariam a se digladiar ao invés de questionar a desproporcionalidade de valores em favor das empreiteiras e o modelo geral do pacote.

11) O pacote garante a isonomia entre campo e cidade no atendimento à moradia?

O pacote prevê 500 milhões de reais para o Programa de Habitação Rural. Os valores são irrisórios: menos de 2% do total de subsídio do programa e com teto de 10,6 mil reais por unidade habitacional, o que é claramente inviável para uma construção digna.

Do ponto de vista quantitativo são propostas 50 mil unidades habitacionais, o que corresponde a apenas 2,5% do déficit rural, de 1,75 milhões de unidades. Tais recursos não poderão, ainda, ser utilizados em assentamentos de reforma agrária, que deverão contar, daqui em diante, exclusivamente com recursos do Incra. Na verdade, a habitação rural, devido às dificuldades logísticas, distâncias entre lotes e limites para o ganho de escala, não despertou interesse das construtoras.

A precarização da política de habitação rural exprime uma incoerência da política habitacional com a de desenvolvimento regional no país, pois favorece o êxodo rural e o crescimento das precárias periferias urbanas. A maior quantidade individual de subsídios destinados à habitação urbana (cerca de 9 vezes maior ao subsídio do Incra) corrobora a divisão cada vez maior entre os padrões de cidadania no campo e na cidade e, por fim, fragiliza a reforma agrária, incentiva a migração e a inviabilidade crescente das próprias cidades.

Considerações finais

O problema da moradia é real e talvez seja um dos mais importantes no Brasil. Contudo o "Minha Casa, Minha Vida" não o formula a partir das características intrínsecas ao problema, mas sim das necessidades impostas pelas estratégias de poder, dos negócios e das ideologias dominantes. Ou seja, o pacote alçou a habitação a um "problema nacional" de primeira ordem, mas o definiu segundo critérios do capital, ou da fração do capital representada pelo circuito imobiliário, e do poder, mais especificamente, da máquina política eleitoral.

Programas de reforma urbana sensatos já foram formulados no Brasil nos últimos 50 anos, mas, a despeito dos esforços de movimentos populares e de técnicos progressistas, pouco se tornaram efetivos. Essa impossibilidade da reforma urbana no Brasil só pode ser entendida num contexto mais amplo, descrito por Florestan Fernandes como a "impossibilidade de um programa de reformas" em nosso país. No caso das cidades, contudo, um programa socialista nunca foi formulado no Brasil, dado o atraso, o idealismo ou o pragmatismo das discussões nesse campo. É preciso, no entanto, que ele seja imaginado coletivamente pelas forças de esquerda, sob pena de assimilarmos novas derrotas e acumularmos resignações, sem uma perspectiva clara do que fazer e pelo que lutar.

Mariana Fix é arquiteta e urbanista formada pela FAU-USP, mestre em sociologia pela FFLCH-USP e doutoranda no Instituto de Economia da UNICAMP. É autora de Parceiros da Exclusão: duas histórias da construção de uma nova cidade em São Paulo e São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem, ambos pela editora Boitempo.
E-mail: mfix@uol.com.br


Pedro Fiori Arantes
é arquiteto e urbanista, mestre e doutorando pela FAU-USP. É coordenador da Usina, assessoria técnica de movimentos populares em políticas urbanas e habitacionais, e assessor do curso "Realidade Brasileira", da via Campesina. É autor de Arquitetura Nova (Editora 34, 2002), e organizador da coletânea de textos de Sérgio Ferro, Arquitetura e trabalho livre (CosacNaify, 2006).
E-mail: pedroarantes@uol.com.br
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Lembrando que a versão integral do texto encontra-se disponibilizada no site do Correio da Cidadania, na seção de Especiais.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O C.H.U.P.A

Mais gente louca com quem queremos aprender sobre política. O CHUPA (Comite Hermético Unificado Porto Alegrense) foiposto pra fora da braguilha revolucionária.

http://chupagora.wordpress.com/

"Num momento em que o deboche se tornou a regra dentro da política usual, só a sacanagem é capaz de responder à altura e desfazer o impasse: dizer o que todo mundo está pensando, mas acha que não pode dizer, porque ainda tenta jogar pelas regras."

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Musica de Revolução

Na linha dos acompanhamentos para um mundo futuro, mando essa história dos NetLabels a partir do DaDARaDIo.
O site é foda, tem muita coisa boa de música, especialmente jazz, uns lances experimentais e umas afrobrasilidades no Estética do Terceiro Mundo. Tudo isso, organizado por categorias, bem formatado e com uma presença gráfica muito boa.

Além disso, vai o toque de outro projeto interessante, que é o do Barulho.org, e de alguns NetLabels, como o Phlow, TestTube e o grande Jamendo.






Isso aí! É a música em revolução.

Paralelos com ARQ existem, mas mostram como nos estamos (ou continuamos) atrás das outras artes. Pergunto-me: porque a arquitetura popular não tem qualidade como a música popular e porque a arquitetura "informada*" não conquista o povo, ou carece de impacto real nas suas oxigenações do pensar e fazer o construído.

Será questão de suporte apenas? Claro que música se faz com um dois três ou mesmo vários instrumentos, mas essencialmente todos cabem em uma ou duas peças de uma edificação. Além disso, somos um dos segmentos mais dominados pela grana - base pra nossa atuação tradicional e ainda necessária para quase todas as alternativas.

*não quero dizer erudita, porque essa anda parelha com a música erudita, que ninguem escuta e quem escuta não entende hehe

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Em Processos e Futuros

Pra uma retomada dum assunto e resposta mui rápida duma colocação do Flip num post antigo, vou lançar 2 reportagens do ArchDaily pra falar do seguinte:

"Me parece que estes experimentos verticalizados e de solução unitária (que são um pouco diferentes dos do Constant) são bastante arrogantes. Pra entender o que quero dizer é só perguntar: como podem ser realizados? Quem poderia construir (1. quem vai levar a idéia à realidade, "designar"... sim, porque corremos este risco, e 2. quem vai trabalhar na construção) e a que custo social? Sem esquecer do custo ambiental e da característica masculina (branca, ocidental) de coisas "titanic" com o qual brinquei antes..."[Flip em futurismus].

Sobre isso, me parece bem direta a associação - e não menos interessante pacas o comentário do Flip - do modo de produção com a "macro-tipologia" [horizontal e caóticamente livre] utilizada nas obras do Constant e de Sant'Elia ou do Mies [verticais e produzida por somente um par de mãos desenhantes/designantes], por exemplo.

Um objeto qualquer pra ser produzido numa escala verticalizada tende - salvo se relevo e alguma técnica específica ajudarem - a necessitar muito mais coordenação. Principalmente pelo fato de que quase obrigatoriamente a construção será feita de baixo para cima, linearmente oganizada. Claro que a ocupação e uso disso podem ser frutos de processos muito diversos e que há estratégias potenciais para mitigar esse efeito centralizador, especialmente da concepção da obra em questão.

Já um objeto horizontalizado tem diversas formas de construir, pode ser de dentro pra fora, de fora pra dentro, do chão a cobertura, iniciar com a cobertura, etc, etc etc. Por necessitar de técnicas mais ao alcance do homem [sem contar com ferramentário específico ou maquinário] as construções mais horizontais se aproximam muito mais do homem-autônomo.

É também questão de um bom-senso [de princípio, mas não necessariamente de fim] considerar que as construções mais no chão são mais econômicas energeticamente, especialmente pela diminuição da performance exigida dos materiais e pelo uso de maquinário pra execução e produção dos insumos. Lógico que isso não se sustenta numa lógica urbana, onde ter centros concentrados pode ser muito eficiente, até um ponto ao menos.

Dessa conversa obvia e rasteiriça cheia de considerações eu abandono a retórica para lançar os tais posts do AD, abaixo duas conversas sobre uma obra do Nouvel para Nova Iorque, a "mais totalitária" e outra, com uma cara [ao menos] diversa.





















[carinha faceira - Axis Mundi]
















Com isso o que pretendo? Hora, dar um pouco mais de confusão nessa história. Se olharmos um pouco pra idéia de estrutura do Axis Mundi, imaginamos que seria possível gerar uma estrutura a lá Archigram que permitisse a plugagem desses módulos ou a construção paulatina dos elementos de preenchimento.

Nada de novo, mas com uma cara interessante, principalmente se confrontado com o projeto do Nouvel que é tudo da tal afirmação da "
característica masculina (branca, ocidental)" de que falava Flip logo lá em cima.

Por outro lado, é justamente nessa carinha bonita que reside um cadafalso: o de que a diversidade das soluções, por sí só ou em grande parte, pode ser responsável por qualquer determinação de democratias. Pulando por cima desse discurso pós-mo de balcão, caímos na dúvida do que fazer em direção dessa arquitetura mais aberta a possibilidades e que seja principalmente fruto de um processo social de autonomia.

Acredito que seja exatamente aqui que as chamadas "macro-tipologias" lá de cima contribuem mais pra explicar o fenômeno do desígnio: um espaço que se pretenda dialógico com a sociedade na qual se insere (ou pela qual é produzido) deve ser fruto de conexões sociais espacializadas, sabendo-se capaz, também, de contribuir para
socializações diferentes das existentes ou pela intensificação de certas práticas.

Nesse sentido, espaço é produto e produtor de sociedade, desde a concepção a simbologia semântica ou sintática que busque. O desenho deste espaço idealmente se converte em meta-desenho, ou na criação de ferramentas para se desenhar abertamente. De maneira defensiva, essas ferramentas tem, pelo pós-Moderno que há entre nós - sido tencionadas em direção ao não-desenho [uma vez que o Moderno era justamente o ultra-desenho].

Hoje, nos meios sociológicos, urbanístico-participativos e mesmo nos delírios ecologísticos espalhados por aí, diversas posturas processuais na arquitetura buscam diminuir o impacto da mão-projetante enquanto buscam salientar o impacto e a influência na concepção das mãos-construtoras.

Não discordo dessa postura - ao menos se for temporária e transitória para um outro estado de projetar - mas acho que é limitada, por se definir como negação de algo sem considerar a sua própria necessidade de negação [a sua superação], necessária uma vez que perca seu caráter de contestação e se transforme em afirmação de outra forma totalizante.

Se no futuro conseguirmos pensar em maneiras de trabalhar o projeto e a edificação socialmente, espero que isso se dê de maneira a incluir essa dialética da relação entre projeto e a sociedade.
Enquanto isso, continuamos. Desconfiando.

domingo, 23 de agosto de 2009

PSICHO Y

NOTA PÚBLICA SOBRE O ASSASSINATO DE ELTON BRUM PELA BRIGADA MILITAR DO RS

21 de agosto de 2009

NOTA PÚBLICA SOBRE O ASSASSINATO DE ELTON BRUM PELA BRIGADA MILITAR DO RIO GRANDE DO SUL

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra vem a público manifestar novamente seu pesar ela perda do companheiro Elton Brum, manifestar sua solidariedade à família e para:

1. Denunciar mais uma ação truculenta e violenta da Brigada Militar do Rio Grande do Sul que resultou no assassinato do agricultor Elton Brum, 44 anos, pai de dois filhos, natural de Canguçu, durante o despejo da ocupação da Fazenda Southall em São Gabriel. As informações sobre o despejo apontam que Brum foi assassinado quando a situação já encontrava-se controlada e sem resistência. Há indícios de que tenha sido assassinado pelas costas.

2. Denunciar que além da morte do trabalhador sem terra, a ação resultou ainda em dezenas de feridos, incluindo mulheres e crianças, com ferimentos de estilhaços, espadas e mordidas de cães.

3. Denunciamos a Governadora Yeda Crusius, hierarquicamente comandante da Brigada Militar, responsável por uma política de criminalização dos movimentos sociais e de violência contra os trabalhadores urbanos e rurais. O uso de armas de fogo no tratamento dos movimentos sociais revela que a violência é parte da política deste Estado. A criminalização não é uma exceção, mas regra e necessidade de um governo, impopular e a serviço de interesses obscuros, para manter-se no poder pela força.

4. Denunciamos o Coronel Lauro Binsfield, Comandante da Brigada Militar, cujo histórico inclui outras ações de descontrole, truculência e violência contra os trabalhadores, como no 8 de março de 2008, quando repetiu os mesmos métodos contra as mulheres da Via Campesina.

5. Denunciamos o Poder Judiciário que impediu a desapropriação e a emissão de posse da Fazenda Antoniasi, onde Elton Brum seria assentado. Sua vida teria sido poupada se o Poder Judiciário estivesse a serviço da Constituição Federal e não de interesses oligárquicos locais.

6. Denunciamos o Ministério Público Estadual de São Gabriel que se omitiu quando as famílias assentadas exigiam a liberação de recursos já disponíveis para a construção da escola de 350 famílias, que agora perderão o ano letivo, e para a saúde, que já custou a vida de três crianças. O mesmo MPE se omitiu no momento da ação, diante da violência a qual foi testemunha no local. E agora vem público elogiar ação da Brigada Militar como profissional.

7. Relembrar à sociedade brasileira que os movimentos sociais do campo tem denunciado há mais de um ano a política de criminalização do Governo Yeda Crusius à Comissão de Direitos Humanos do Senado, à Secretaria Especial de Direitos Humanos, à Ouvidoria Agrária e à Organização dos Estados Americanos. A omissão das autoridades e o desrespeito da Governadora à qualquer instituição e a democracia resultaram hoje em uma vítima fatal.

8. Reafirmar que seguiremos exigindo o assentamento de todas as famílias acampadas no Rio Grande do Sul e as condições de infra-estrutura para a implantação dos assentamentos de São Gabriel.

Exigimos Justiça e Punição aos Culpados!

Por nossos mortos, nem um minuto de silêncio. Toda uma vida de luta!

Reforma Agrária, por justiça social e soberania popular!

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

domingo, 16 de agosto de 2009

INIMIGOS

Auto-retrato matando George Bush
2005/carvão sobre papel/ 200x150 cm

Auto-retrato matando Fernando Henrique Cardoso
2005/carvão sobre papel/200x150 cm

Auto-retrato matando Lula
2005/carvão sobre papel/200x150 cm

http://www.gilvicente.com.br/
O que: mostra Inimigos, de Gil Vicente
Quando: de 6 de agosto a 5 de setembro, de segunda a sábado, das 14h às 19h

Onde: Atelier Subterrânea (Independência, 745)
Quanto: entrada franca

domingo, 9 de agosto de 2009

Se precisasse dizer algo mais...

...tentaríamos. A montagem fala.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

MUTIRÃO NO CASATIERRA



Tu que sempre ficou imaginando por que motivo o CasaTierra, depois de tanto tempo no Casarão, ainda não tinha feito um mutirão de construção do próprio espaço...


Buenas, chegou a hora!*


MUTIRÃO NO CASATIERRA!


Neste sábado e domingo, das nove da matina até a hora de terminar...


Trabalharemos com técnicas de pau-a-pique, ferro-cimento e reutilização de todo tipo de badulaque que encontramos na rua e guardamos faz tempo... Criatividade será a ordem do dia.


Traga algo da sua geladeira ou armário! Faremos almoço e etcéteras comestíveis... Começaremos com um mate bem cevado pra espantar o frio.


Te localiza:


O que: mutirão com técnicas de bio-construção.

Quando: dia 1° e 2 de agosto, sábado e domingo, iniciando as 9h.

Onde: CasaTierra - Casarão do Arvoredo, R. Fernando Machado 464, garajão.

*Guerrilha never die!

domingo, 19 de julho de 2009

MUSICA PARA REVOLUÇÃO


Leia mais sobre na entrevista que abre a SINAL de MENOS com Roger Behrens.

Eis o nosso segundo número de Sinal de Menos. Muito do que se pode dizer sobre os textos dessa edição está simbolizado em sua capa: enquanto a produção obstinada e infinita de mercadorias vai transformando o planeta num imenso monturo de lixo, os cadáveres humanos do trabalho e do dinheiro contemplam, acossados pelo tempo abstrato da valorização, cada vez mais sem lastro, a sua própria ruína enquanto sociedade, história, cultura, subjetividade e espaço social e natural. Aliás, esse último aspecto do desastre capitalista, quase ausente em nosso primeiro número, ganha destaque em pelo menos três textos nessa edição. Leia mais...

Nesta edição:

Editorial

Entrevista com Roger Behrens

Artigos

O valor como fictio juris

2ª parte: História e Metafísica da forma jurídica

Joelton Nascimento

Trabalho e Emancipação:

Uma análise do Trabalho Feminino no Capitalismo

Íris Nery do Carmo

Economia na base da porcaria

Como o sistema produtor de mercadorias chega ao absurdo lógico

da não-qualidade total

Paulo V. Marques Dias

Y€$! Nós somos verdes!

Produção mais limpa ou sujeira sem fim?

Recuperação e revolta dos “excrementos da produção”

Daniel Cunha

As vestes negras de Hamlet

A emergência do sujeito moderno como sujeito político

Raphael F. Alvarenga

O Abismo do negativo

Baudelaire e a forma fúnebre da beleza moderna

Cláudio R. Duarte

Traduções

O Planeta enfermo

Guy Debord

Barulho enorme,

Viajantes da estrada de ferro e

Uma comunidade de canalhas

Franz Kafka

Leituras e comentÁrios

A estetização da (des)ordem brasileira,

segundo José M. Wisnik

Rodrigo Campos Castro

Origens da crítica do direito

Joelton Nascimento

Do aspecto não-idêntico do valor de uso

Moishe Postone e a questão do sujeito

Raphael F. Alvarenga


quarta-feira, 10 de junho de 2009

Ludentis

Desde que comecei a leitura de Homo Ludens de Johan Huizinga eu esperava uma deixa pra introduzi-lo nesse diálogo que temos no blog. Ao invés de contrapor ou ir mais além para dentro da academia, vou dar um passo atrás, colocar fragmentos editados pouco criteriosamente desse texto que de maneira muito tranquilo nos leva num passeio pela civilização humana construindo as bases da cultura e do nosso comportamente e explicitando os elementos lúdicos presentes neles.

Sem mais, vamos a alguns fragmentos:

HUIZINGA, Johan [tradução João Paulo Monteiro]. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007.

Prefácio

Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto a razão do sécullo XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber. Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta, visto que pode servir para designar grande número de animais. Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar na nossa nomenclatura.

[...]

Assim, o jogo é aqui tomada como fenômeno cultural e não biológico, e é estudado em uma perspectiva histórica, não propriamente científica em sentido restrito. [...] Se eu quisesse resumir meus argumentos sob a forma de teses, uma destas seria que a antropologia e as ciências a ela ligadas têm, até hoje, prestado muito pouca atenção ao conceito de jogo e à importância fundamental do fator lúdico para a civilização.

[...]

1. Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno Cultural

O jogo é mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É nos porssível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à idéia de jogo.

[...]

Desde já encontramos aqui um aspecto muito importante: mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassao os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa " em jogo" que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando de " instinto" ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou "vontade" seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência.

[...]

Se alguma delas [explicações sobre os porquês do jogo] fosse relamente decisiva, ou eliminaria as demais ou englobaria todas em uma unidade maior. A grande maioria, contudo, preocupa-se apenas superficialmente em saber o que o jogo é em sí mesmo e o que ele significa para os jogadores. Abordam diretamente o jogo utilizando-se dos métodos quantitativos das ciências experimentais, sem antes disso rpestarem atenção a seu caráter profundamente estético.[...] E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo. O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energoa excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, etc, soba a forma de exercícios e reações puramente mecânicos. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo.

[...]

Este último elemento, o divertimento do jogo, resiste a toda análise e interpretação lógicas. [...] E é ele precisamente que define a essência do jogo. Encontramo-nos aqui perante uma categoria absolutamente primária da vida, que qualquer um é capaz de identificar desde o próprio nível animal. É legítimo considerar o jogo uma "totalidade", no moderno sentido da palavra [...].

Como a realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida humana é impossível que tenha seu fundamento em qualquer elemento racional, pois nesse caso, limitar-se-ia à humanidade. A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a qualquer concepção do universo. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua lingua não possua um termo geral capaz de defini-lo. A existência do jogo é inegável. É possível negar, se se quiser, quase todas as abstraçõe: a justiça, a beleza, a verdade, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo.

[...]

As grandesa tividades arquetípicas da sociedade humana são desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com esta designação elevá-las ao domínio do espírito. Ma criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda a metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homen cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.

Outro exemplo é o mito, que é também uma transformação ou uma "imaginação" do mundo exterior, mas implica em um processo mais elaborado e complexo do que ocorre no caso das palavras isoladas. O homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos fenômenos atribuindo a este um fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito de fantasia que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do cultom verificaremos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra.


Ora, é no mito e no culto que tem origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas elas tem suas raízes no solo primevo do jogo.

[...]

Chegamos assim à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida "corrente" nem vida " real". Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida "real" para uma esfera temporária de atividade com orientação própria.[...] Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância, ele se nos apresenta: ocmo um intervalo em nossa vida quotidiana. [...] Nessa medida, situa-se numa esfera superior aos processos estritamente biológicos de alimentação, reprodução e autoconservação.

[...]

O jogo distingue-se da vida "comum" tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características principais: o isolamento, a limitação. É "jogado até o fim" dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um caminho e sentido próprios.

[...]

Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é desordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. É talvez devido a esta afinidade profunda entre ordem e o jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga medida ligado ao domínio da estética. Há nele uma tendência para ser belo. [...]

O elemento de tensão [...] desempenha um papel especialmente importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo ao desenlace, o jogador quer que alguma coisa "vá" ou "saia", pretende "ganhar" à custa de seu próprio esforço.[...] Embora o jogo enquanto tal esteja para além do domínio do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habiliade e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua "lealdade". Por que, apesar de seu ardente desejo e ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo.

[...]

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como "não-séria" e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.

[...]

12. Elemento Lúdico na Cultura Contemporânea

[...]

"Ele considerava jogos infantis todas as opiniões humanas" diz a tradição grega mais tardia acerca de Heráclito. Em oposição a esta frase lapidar, citemos agora de maneira mais extensa as profundas palavras de Platão [...] "Embora as coisas humanas não se caracterizem por uma grande seriedade, mesmo assim é necessário ser sério, ainda que issonão contribua para nossa felicidade... É preciso tratar com seriedade aquilo que é sério enada mais. Só Deus é digno de suprema seriedade, e o homem nçao passa de um joguete de Deus, e é esse o melhor aspecto de sua natureza. Portanto, todo homem e mulher devem viver a vida de acordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suas inclinações atuais... Pois eles consideram a guerra uma coisa séria, embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos desse nome, justamente as coisas que nós consideramos as mais sérias. Portanto, todos devem esforçar-se ao máximo por viver em paz. Qual é, então, a maneira mais certa de viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando em combate." Assim "os homens viverão de acordo com a natureza, pois sob muitos aspectos eles são como fantoches e só possuem uma pequena parte da verdade."

[...]

Sempre que nos sentirmos presos de vertigem, perante a secular interrogação sobre a diferença entre o que é sério e o que é jogo, mais uma vez encontraremos no domínio da ética o, ponto de apoio que a lógica é incapaz de oferecer-nos. Conforme dissemos desde o início, o jogo está fora desse domínio da moral, não é em sí mesmo nam bom nem mau.Mas sempre que tivermos de decidir se qualquer ação a que somos levados por nossa vontade é um dever que nos é exigido ou é lícito como jogo, nossa consciência moral prontamente nos dará a resposta. Sempre que nossa decisão de agir depende da verdade ou da justiça, da compaixão ou da clemência, o problema deixa de ter sentido. Basta uma gota de piedade para colocar nossos atos acima das distinções intelectuais. Em toda a consciência moral baseada no reconhecimento da justiça e da graça, o dilema do jogo e da seriedade, até aqui insolúvel, deixará de poder ser formulado.