quarta-feira, 18 de março de 2009

Leituras e Comentários sobre a Assistência Técnica a Moradia Econômica

Vou me permitir fazer uma postagem mais informal pra aproveitar um email que enviei e guardá-lo por aqui.
Sobre alguma pesquisa que fiz para tentar me inteirar do processo que levou a criação da lei 11.888/2008 que determina a destinação de recursos financeiros para a Assistência Técnica para a Moradia Econômica, vou fazer um relato do que entendi até aqui começando por uma enumeração brevíssima dos principais fatos deste processo:
  1. A lei começa com Clóvis Ilgenfritz no Sindicato dos Arquitetos do RS;
  2. Como era uma das primeiras bandeiras da reforma urbana, está incluída no Fórum de Reforma Urbana desde a constintuinte;
  3. Vem junto na formulação do Estatuto das Cidades e entre nele lá no Artigo 4, inciso IV, letra "r" - assistência técnica como direito fundamental;
  4. É levada para o congresso na forma do PL 6223/2002 pelo Clovis (PT-RS), que recebe emendas e vira o PL 889/2003 do Zezeu Ribeiro (PT-BA);
  5. É discutida em 2005 com a realização de 16 seminários regionais e um seminário nacional pela Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA);
  6. Aprovado pelo congresso e sancionada pelo Lula na forma da lei 11.888/2008.
Nesse panorama vou destacar o substitutivo do Zezeu que inclui a participação dos engenheiros na lei (até entao era de arquitetura somente) e sobre alguns comentários do Clóvis sobre o processo de evolução da lei, na época do substitutivo, que vi nos fóruns online do Acampamento Intercontinental da Juventude de 2005, unma mensagem enviada pelo Fernandao a pedido do Albano, imagino.
Buenas. a inclusao dos Engs. vem, claro, por questoes econômicas mas tbm por questões práticas: projetos de saneamento e tal precisam dos caras. O problema, conforma ressalta o Clovis na carta, é que não ha diferenciacao entre o q eles fazem e o q os Arqs. fazem. Entao eles podem fazer arquitetura, mas nos nao podemos fazer saneamento, capicce? Vai a consideração do Clovis:

" Aqui, exatamente, reside uma das minhas preocupações com relação ao Substitutivo do Deputado Zezéu, quando precisamos nos reportar ao conceito inerente à *arquitetura* e ao *trabalho de
arquitetura* que é o de *projetar e construir o espaço de viver das pessoas*, ou num conceito mais largo amplo, o profissional que trabalha o *habitat* humano.
Se isto é verdadeiro, mesmo que colocado aqui de forma simplista, é verdadeiro também que os seviços de arquitetura e urbanismo sejam exercidos por profissionais arquitetos ou, se quiserem, por *profissionais formados e habilitados para os serviços de arquitetura*."


Outra coisa, que é levantada na carta é a possibilidade de atuação de profissional autônomo - ferida pelo substitutivo quando inclui os profissionais do serviço público,que já são contemplados por outros programas, o que mistura conceitualmente a ATME numa grande e sem foco solução para financiar a arquitetura para as baixas rendas. EM outras palavras, desvia o foco da atenção por profissionais autonomos para a utilização dos recursos para reformar ou reformçar os orçamentos dos deptos. e secretarias de habitação públicas. Como exemplo, é o caso de Pelotas, que estabeleceu, com a Lei 4089, um serviço público de plantas prontas pra serem repetidas sob demanada. Pra mim, um contra-senso e um absurdo completo. Limitam inclusive a Habitação de Interesse Social a 40m2 e dizem que se ela puder ser expandida para além de 60m2está excluída do programa! Seguem as palavras do Clóvis em 2005:

" O segundo ponto de natureza conceitual que estou levantando, neste momento, e que precisa sermelhor analizado no Projeto de Lei ou no Programa propriamente dito, é que os *Serviços de Arquitetura devem ser exercidos por um profissional para um beneficiário* ou por vários profissionais para vários beneficiários. Ou seja, é um trabalho *individualizado*, personificado e, de preferência, *exercido por profissional autônomo*, preparado, assim como é o caso do médico para atender um paciente, e não por uma entidade, mesmo que seja "sem fins lucrativos".
Em outras palavras, o profissional se cadastra, se habilita a atender o Programa. A figura da *pessoa jurídica *ou *funcionário público* como está proposto no Substitutivo, desfigura o Programa que deve ser dirigido para *profissionais indicados *às Prefeituras e por conseqüência aos beneficiários."


Fora esta questão de quem fará os projetos e como, gostaria de comentar comentar um dos artigos da lei que fala sobre o agente de seleção dos beneficiários, no art. 3° diz assim:

" Art. 3o A garantia do direito previsto no art. 2o desta Lei deve ser efetivada mediante o apoio financeiro da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para a execução de serviços permanentes e gratuitos de assistência técnica nas áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia."

Depois, no treco n°4:

" § 4o A seleção dos beneficiários finais dos serviços de assistência técnica e o atendimento direto a eles devem ocorrer por meio de sistemas de atendimento implantados por órgãos colegiados municipais com composição paritária entre representantes do poder público e da sociedade civil."

Ou seja, mais um conselho ou mais poderes pro conselho que existe!

No caso de Porto Alegre, temos uma disputa entre o COMATHAB - Conselho Municipal de Acesso a Terra e Habitação (o regimento eleitoral dele pode ser acessado no site do DEMHAB) e o CGFMD, que será (quando criado) o Conselho Gestor do Fundo Municipal de Desenvolvimento. Esse fundo já existe e é aquele que recebe os recursos da venda de solo criado. O que mudará é que terá um Conselho Gestor agora, e sua formulação é a seguinte (algumas emendas mudaram o nome pra Fundo Municipal de HIS que absorveria o FMD):

" Art . 4° O Conselho Gestor do FMD será composto de forma paritária por 09 (nove) conselheiros representantes do Poder Executivo Municipal e da sociedade civil, abaixo descritos:
I -01 (um) representante do Departamento Municipal de Habitação- DEMHAB;
II - 01 (um) representante do Gabinete de Programação orçamentária do Município de Porto Alegre -GPO;
II I - 01 (um) representante da Secretaria do Planejamento Municipal -SPM;
IV - 01 (um) representante do Conselho Regional de. Engenharia e Arquitetura do Rio Grande do Sul-
CREA/RS;
V - 01 (um) representante do Sindicato das Indústrias da Construção Civil no Rio Grande do Sul -
SINDUSCON/RS;
VI - 01 (um) representante da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do Sul -
OAB/RS;
VII - 01 (um) representante do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher;
VllI - 01 (um) representante da União de Associação de Moradores de Porto Alegre - UAMPA;
IX - 01 (um) representante do Conselho do Orçamento Participativo do Município de Porto Alegre.
§ 1° A Presidência do Conselho-Gestor do FMD será e xercida pelo Diretor-Geral do Departamento Municipal de Habitação -DEMHAB.
§ 2° O presidente do Conselho-Gestor do FMD exercer á o voto de qualidade. ."


Ele também se propôs a acabar com o COMATHAB, substituindo a representação direta popular pelas 6 entidades e classe e populares acima. Só que no final do ano recebeu várias emendas, pego a última que modificava principalmente o artigo 4°:

" Art. 4° O Conselho Gestor do FMHIS será composto de forma paritária por 09 (nove) conselheiros representantes integrantes do COMATHAB, conforme segue:

I - 03 (três) representantes governamentais indicados;
II - 03 (três) representantes de entidades de classe; e
III - 03 (três) representantes do movimento popular comunitário

§ 1°
Os membros do Conselho Gestor do FMHIS, integrantes das entidades de classe, com representação da área habitacional , e das entidades do movimento popular comunitário serão indicados pelas Câmaras do COMATHAB, dentre seus pares, cabendo ao Executivo Municipal indicar os seus representantes integrantes do referido Conselho."

Caso estas emendas sejam aprovadas a lei fica realmente viável e mais justa, pois devolve o poder de indicação pro COMATHAB que historicamente está ligado a reforma urbana e é muito marcado pela presença das cooperativas habitacionais. O constraste maior fica em relação a redação original que oligopolizava o poder nas mãos da tecnocracia pública e privada, um completo revés dos objetivos do FNHIS e da reforma urbana como um todo.
Sei que estes comentários estão longe de ser um retrato fiel do processo e que devem carregar imensas incorreções, mas espero que sirva para que alguns dos arquitetos que estejam por fora desta agenda tão importante para o país possam começar a dialogar mais claramente com ele e assumir um compromisso de gerir o processo de regulamentação que se aproxima.Além disso, essa discussão é pra apontar caminhos possíveis de atuação pra nós ou pra qualquer arquiteto a bem dizer.
Abraços!

domingo, 1 de março de 2009

Alguns retalhos críticos sobre Harvey e Reforma Urbana no FSM 2009


Lendo um texto de David Harvey, encorajei-me em escrever algo sobre. O texto a que me refiro é a palestra de abertura da tenda de Reforma Urbana de 29 de Janeiro de 2009, no Fórum Social Mundial em Belém do Pará. Harvey, em sua palestra, encontra um tom de certa forma conciliatório entre as esquerdas, fato bastante útil num encontro como este. Porém não queremos reproduzir o que Harvey já disse, tão pouco temos compromisso com qualquer projeto pré-formatado de sociedade, portanto nos demos à liberdade de explorar. Reproduzo, aqui, alguns retalhos críticos.


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Quando Harvey fala do “direito à cidade”, assunto já tratado (e maltratado, diga-se de passagem) por muitos autores, coloca em termos corretos, do nosso ponto de vista: Eu tenho trabalhado já há algum tempo com a idéia de um direito à cidade. (...). O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história, vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas. Assim, nessa luta pelo direito à cidade haverá também uma luta contra o capital.


Porém, no decorrer do texto, tentando ressaltar a importância desta luta, Harvey parece deixar de lado algumas coisas importantes que já não podemos deixar de tratar em qualquer visão que se pretenda global. A primeira é a Reforma Agrária, luta complementar da Reforma Urbana, que tantos frutos na luta contra o capital tem rendido na América Latina. Uma questão de como se produz e distribui os alimentos, em primeiro nível. A segunda é a questão ambiental, que de certa forma reúne as duas lutas (urbana e agrária) numa pauta atualizada e dá o correto caráter de urgência. A questão ambiental serve tanto de aglutinadora de movimentos quanto de instrumento para esta aglutinação de forças e sua intersecção parece uma das poucas saídas para tratarmos uma ampla gama de questões de sobrevivência. Há, porém, de se ter cuidado com termos como “ecosocialismo” de Michel Lowy, é como dizer bioarquitetura, por exemplo. O socialismo é um outro tipo de relação social que vê o ser humano como parte da natureza que não precisa lutar pela sobrevivência, contra a natureza, mas sim a favor desta, trabalhando a fartura que é possível construir a partir do manejo adequado e racional de recursos existentes e esgotáveis. Assim como a “bioarquitetura” é a mesma boa e velha arquitetura que trabalha nestes mesmos parâmetros de imanência, é mais atual, mas ainda é arquitetura, arquitetura do ambiente.


Assim, tanto no “socialismo”, palavra gasta e classificadora de atitudes perante o mundo, quanto na arquitetura, em nome da qual se fazem as mais irracionais e gigantescas transformações de matéria, existe um tipo de relação social humana (, ou moral, ou de pensar o mundo, como queiram), que é governada pelo valor (valor de troca e valor de uso – que já pressupõe o primeiro). A forma mais trivial de manifestação deste fato, e também a mais enigmática, é que, nas sociedades contemporâneas, a maioria dos bens materiais e simbólicos circulam sob forma de mercadoria. A mercadoria é, hoje, o modo sob a qual se dá a mais ampla gama de socializações: do estado às instituições filantrópicas, da arte aos espaços urbanos, das leis aos juízes, da escola à filosofia. Assim, um dos maiores méritos de Karl Marx não foi, como pensam os marxistas, ter posto a luta de classes como o motor da história, mas ter desvendado esta forma valor e sua decorrente forma de socialização, a mercadoria. Segundo Marx, o capitalismo necessita de crises pra se regular quando o estado, seu instrumento regulatório consciente, não funciona adequadamente. Harvey expõe da seguinte forma:


“... a forma com que o capital opera nas cidades é uma de suas fraquezas. Assim, eu acredito que, dessa vez, a luta pelo direito à cidade está no centro da luta contra o capital. Nós estamos vivendo agora, como todos sabem, uma crise financeira do capitalismo. Se nós olharmos para a história recente, nós descobriremos que ao longo dos últimos 30 anos houve muitas crises financeiras. Alguém fez os cálculos e disse que desde 1970 houve 378 crises financeiras no mundo. Entre 1945 e 1970 houve apenas 56 crises financeiras. Portanto, o capital tem produzido muitas crises financeiras nos últimos 30 ou 40 anos. E o que é interessante é que muitas dessas crises financeiras têm origem na urbanização. No fim da década de 1980, a economia japonesa quebrou, e quebrou por conta da especulação da propriedade e da terra. Em 1987, nos Estados Unidos, houve uma enorme crise, na qual centenas de bancos foram à falência, e tudo se deveu à especulação sobre a habitação e o desenvolvimento de propriedade imobiliária. Nos anos de 1970 houve uma grande crise mundial nos mercados imobiliários. E eu poderia continuar indefinidamente, dando-lhes exemplos de crises financeiras com origens urbanas. Meu cálculo é que metade das crises financeiras dos últimos 30 anos teve origem na propriedade urbana. As origens dessa crise nos Estados Unidos estão em algo chamado crise das hipotecas sub prime. Mas eu chamo esta crise não de crise das hipotecas sub prime, e sim de crise urbana.”


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Argumentando com a dificuldade dos capitalistas em encontrar saídas rentáveis para o excedente de capital, o qual investem na compra de ativos, ações, direitos de propriedade, inclusive intelectual, e, é claro, em propriedade imobiliária ao invés de investir na produção de usos concretos, o que geraria mais empregos e daria mais vida útil ao capitalismo, argumenta que (...), desde 1970, cada vez mais dinheiro tem sido destinado a ativos financeiros, e quando a classe capitalista começa a comprar ativos, o valor destes aumenta. Assim eles começam a fazer dinheiro com o crescimento no valor de seus ativos. Com isso, os preços da propriedade imobiliária aumentam mais e mais. E isso não torna uma cidade melhor, e sim a torna mais cara. Assim, cria-se uma situação em que os ricos podem cada vez mais exercer seu domínio sobre a cidade, pois essa é forma que encontram de usar seu excedente. O caso dos diversos empreendimentos que visam atender a demandas como a copa do mundo e a necessidade da classe média imitar os ricos em campos de concentração chamados “condomínios fechados”, por exemplo, não é uma questão de distribuição de trabalho entre arquitetos como tenho ouvido de alguns desavisados. Parece ser, isto sim, mais um passo em direção à crise urbana, à valorização irracional carimbada pelo estado e a crise ambiental das cidades de forma geral, não só de Porto Alegre.


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Em suma, Harvey nos instrumentaliza com atualíssimos argumentos de luta de classes no meio urbano, relativos a um conceito em construção, o conceito de Reforma Urbana. Se em número de crises, as urbanas parecem importantíssimas, em qualidade, as ambientais parecem mais graves. Portanto caberia um conceito de Reforma Ambiental, uma chave da qual partissem Reforma Agrária e Reforma Urbana numa visão integrada de ser humano e natureza em busca de novas relações sociais e, por conseqüência e causa, de produção. Uma reforma ambiental só poderia fazer o ser humano encontrar-se com seu conceito, livrá-lo do mimetismo de competição e dominação da natureza para começar a integrar-se, manejar recursos com ganhos para todos. Instrumentos já existem, a agroecologia, a permacultura, a agricultura urbana, a bio-construção. Cabe a nós integrar estes conceitos na produção de alimentos, no urbanismo, na arquitetura. Cabe a nós, para mais além de tudo, tornarmo-nos livres e, como disse Slavoj Žižek:


“Hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal ‘pós-ideológico’ – ou não significa nada.”


Questionar o consenso democrático-liberal, primeiro, porque não é democrático, funciona através de urnas numa escala totalmente imprópria e não legítima; segundo, porque não é liberal, é escravo do valor e da forma mercadoria; terceiro, porque não é pós-ideológico, é completamente ideológico, apenas a ideologia não nos é visível, pois se forma quando agimos cotidianamente reproduzindo o que os donos da maior parte dos bens concretos ou imateriais circulantes ditam de suas salas climatizadas.


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Assim apoiamos o experimentalismo, o método do erro e acerto, de aproximações sucessivas, nosso experimentalismo na arquitetura, nos materiais, nas relações de produção da edificação, nas relações humanas geradas na poiese e na poesia da construção, com a certeza de que a mudança não se dará mais por vias burocráticas, eleições ou “revoluções estatais”. Não se produz autodeterminação a partir de cima, não se cria seres humanos a partir de estruturas piramidais ou de árvore. Como será? Melhor perguntar como vem sendo. Nosso projeto é infinito, local, auto-questionador, se move na velocidade do sonho. Portanto a Reforma Urbana só pode ser um conceito em construção. Construção permanente, aliás.